Tragédia de Mariana: 7 anos de espera

05/11/2022

Pablo Nascimento, do R7

Fonte:https://estudio.r7.com/tragedia-de-mariana-sete-anos-de-espera-05112022

Há sete anos o pescador e garimpeiro Geraldo Felipe, de 57 anos, mais conhecido como Tuzinho, passou a ter certeza de que é falso o mito de que um raio não cai duas vezes no mesmo local.

No dia 5 de novembro de 2015, o rompimento da barragem da Samarco, em Mariana, a 110 km de Belo Horizonte, levou milhões de toneladas de rejeito de minério ao rio Doce, de onde ele tirava a maior parte da renda da família.

Na época, ele ainda sentia o choque cultural e emocional de ter sido remanejado, em 2004, da comunidade onde vivia: São Sebastião do Soberbo, distrito de Santa Cruz do Escalvado, a 208 km de Belo Horizonte.

O povoado foi realocado em outro canto da cidade, no agora chamado Novo Soberbo. O antigo foi inundado para a construção da Usina Hidrelétrica Risoleta Neves, também conhecida como usina de Candonga.

“Eu fui atingido duas vezes”, comenta sobre o fato de ter visto a vida virar de ponta-cabeça em duas ocasiões em função de uma grande empresa e contra a vontade própria.

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PABLO NASCIMENTO / R7

O comentário foi feito enquanto Tuzinho seguia com a equipe do R7 para o rio Doce. “Esta é a primeira vez que eu entro no rio desde o rompimento”, disse ao entrar no barco a motor com capacidade para sete pessoas. Acompanhe parte da viagem em um vídeo em 360°/VR. Para melhorar experiência assista pelo celular e com óculos de realidade virtual.

A ocasião exigiu uma vestimenta a caráter. A camisa branca já com sinais do tempo e a pochete marrom de couro pendurada em um dos ombros ganharam a companhia de um colete salva-vidas em tom de camuflagem militar e um facão guardado em uma capa também de couro. Ambos com aparência de novos e bem cuidados. De fato, eram.

“Comprei esse colete a mais ou menos um ano para usar quando eu fosse para a beira do rio. Hoje foi a primeira vez que eu usei”, conta.

Durante o passeio, que durou aproximadamente 30 minutos, até os grandes paredões da usina, o pescador explicou o motivo de não se aproximar do rio desde a tragédia.

“Às vezes algumas pessoas que não são daqui vêm e pescam, mas nós nascidos e criados aqui na região ainda não sentimos segurança na qualidade do pescado e nem da água”, diz enquanto estica o braço apontando para todos os lados do rio.

“Quando a gente fala que o peixe é daqui, ninguém quer comprar”

Tuzinho

Apesar da preocupação dos moradores, a Fundação Renova, criada para receber o dinheiro das mineradoras e aplicar na correção de danos da tragédia, afirma que a água do rio Doce “apresenta condições similares às de antes do rompimento” e pode ser consumida por humanos se passar por “tratamento convencional nos sistemas públicos de saúde”.

A entidade também garante que o manancial pode ser usado para irrigação e dado a animais.

Ao todo, 45 milhões de metros cúbicos de rejeito saíram da barragem de Fundão. O volume é suficiente para construir 18 pirâmides de Quéops, a maior do Egito. O montante é quatro vezes maior do que o despejado na tragédia de Brumadinho, em 2019.

A lama de restos de minério de Mariana varreu comunidades, áreas de matas, nascentes e atingiu 670 km de cursos d’água. O material atingiu os rios Gualaxo do Norte, do Carmo e Doce até chegar ao Oceano Atlântico, em Linhares, no Espírito Santo.

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Povos tradicionais

“Sou pescador e faiscador.” É bem comum ouvir essa resposta ao perguntar a algum morador de São Sebastião do Soberbo sobre o que ele faz para ganhar a vida.

Faiscador é o nome que eles usam para a atividade de garimpo, feita de forma manual, sem maquinário sofisticado. Tuzinho é um deles. “Desde os sete anos”, comenta.

Ele lembra que extraía o metal nobre do fundo e da calha do rio enquanto a rede ficava armada para pegar os peixes. Em meses de mais sorte, chegava a faturar R$ 1.000 com a venda do ouro.

O cenário começou a mudar quando o rejeito chegou ao trecho do rio que passa pela comunidade, na manhã seguinte ao rompimento ocorrido por volta das 15h30 do dia 5 de novembro de 2015. “A lama cobriu o ouro. A gente não consegue tirar mais nada de lá”, lamenta.

O mesmo problema aconteceu na cidade de Barra Longa, que fica entre a então barragem de Fundão e a cidade de Santa Cruz do Escalvado. Lá, o material que vazou do reservatório chegou na madrugada do dia 6.

“O prefeito me ligou dizendo que a lama estava chegando. Eu não acreditei”, recorda o pescador, garimpeiro e comerciante Sérgio do Carmo, de 53 anos, também conhecido como Sérgio Papagaio.

Barra Longa fica em um ponto anterior ao rio Doce. É na cidade que acontece o encontro dos rios Gualaxo do Norte e do Carmo.

O rio Doce nasce mais à frente, com a união do Carmo e Piranga, entre as cidades de Rio Doce e Santa Cruz do Escalvado.

Sérgio Papagaio é um dos coordenadores do Grupo de Garimpeiros Tradicionais do Alto do Rio Doce. “Os garimpeiros tradicionais aqui da região são os remanescentes dos garimpeiros que fundaram o estado de Minas Gerais”, comenta Sérgio Papagaio sobre a prática secular.

Morador de Barra Longa (MG) fez poema sobre rios atingidos por lama (Pablo Nascimento / R7)

Morador de Barra Longa (MG) fez poema sobre rios atingidos por lama PABLO NASCIMENTO / R7

Após o rompimento, o grupo se juntou para se autodeclarar uma comunidade de povos tradicionais e, assim, facilitar o acesso dos trabalhadores informais às reparações dos danos financeiros causados pelo rompimento.

Agora, o grupo aguarda um reconhecimento formal por parte da Comissão Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais do Estado de Minas Gerais, ligada ao Governo Estadual. A reportagem procurou o estado para comentar a situação dos moradores da região e aguarda retorno.

O advogado Guilherme Jaria, especialista em povos e comunidades tradicionais, acompanha a situação dos moradores de Santa Cruz do Escalvado, Rio Doce e Chopotó, distrito de Ponte Nova, pelo Instituto Rosa Fortini. A entidade é uma assessoria técnica contratada para prestar apoio aos atingidos depois de um acordo entre a Renova e o poder público.

Jaria avalia que os garimpeiros da região não podem ser comparados àqueles que atuam ilegalmente em outras partes do país, como no Amazonas e no Pará.

“Os povos e comunidades tradicionais têm uma relação de sujeito-sujeito com o ambiente no qual estão inseridos. Em um caso como dos garimpeiros tradicionais do alto rio Doce, se o rio morre, eles morrem”, explica.

Ouça no podcast abaixo a história de outros moradores que dependiam economicamente do rio Doce. Dentre eles, está a empresária Rosane Gomides Sena Cupertino, de 58 anos. Rose, como é conhecida, é dona de um camping no Soberbo Novo.

Ao perder a renda com a fuga dos turistas, a empreendedora viu o filho abandonar o curso de direito em uma faculdade federal por falta de recursos para se manter. Hoje, o camping ainda é bem cuidado por ela, mas está às moscas.

 

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Enquanto isso, os garimpeiros do Alto do Rio Doce ainda lutam por reparação. A Renova declara que empenhou, até novembro deste ano, R$ 11,46 bilhões em indenizações e auxílios financeiros para 403,8 mil famílias impactadas.

O Instituto Rosa Fortini afirma que boa parte dos moradores da região onde a assessoria atua ainda aguarda a liberação da indenização. Há casos como o de Tuzinho, que chegou a ser indenizado, mas questionou os valores, e há relatos como o de Sérgio Papagaio que está recebendo apenas o auxílio financeiro.

Sérgio Papagaio também é conhecido pelos trabalhos artísticos que faz na comunidade de Barra Longa. No poema Grande Encontro, ele relata o impacto da lama que atingiu os rios Gualaxo do Norte e do Carmo. Veja abaixo:

Relação com o rio

A produtora rural e técnica de segurança do trabalho Ana Maria de Oliveira, de 41 anos, lembra das dificuldades que enfrentou para manter a família após o rompimento.

Na época, a moradora de Santa Cruz do Escalvado trabalhava na Usina Hidrelétrica Risoleta Neves. Como boa parte da lama ficou presa no reservatório, a usina precisou ser desligada. Com isso, Ana Maria perdeu o emprego.

Desta vez, ela não pode recorrer ao rio, como já havia feito em outras ocasiões, para pescar e garimpar com o objetivo de conseguir uma renda. O que restou para ela foram as 40 cabeças de gado que tinha na época.

 

“Eu tive que fazer um empréstimo, aí eu fui desfazendo das vacas para pagar. Hoje só tenho 12”, relata sobre a fase em que viu sua produção de leite ficar quatro vezes menor.

A família voltou a ter um pouco mais de segurança quando começou a receber o auxílio emergencial mensal da Renova. Ana Maria ainda aguarda avaliação do perito sobre o pedido de indenização feito por ela.

Nosso café da manhã era peixe. Minha mãe fritava o peixe e dizia que o café da manhã estava pronto.

Ana Maria Oliveira

Ana lembra que o rio foi fonte de alimentação da família e de onde ela conseguiu fazer dinheiro para se formar. Veja como a Ana Maria vive atualmente:

A relação de Ana com o rio passou de geração em geração. A mãe dela, Maria do Carmo Oliveira, de 68 anos, também foi pescadora, produtora rural e garimpeira. Além de conseguir o sustento no rio, era lá que ela tinha momentos de lazer com a família.

“A gente acampava no rio e fazia piqueniques”, conta ao falar sobre a diversão dos filhos. Agora, Maria do Carmo vê os netos e o bisneto crescerem sem ter o curso d’água como referência cultural e de vida.

A neta Rhaquelly Oliveira, de 9 anos, só tinha dois anos quando foi ao rio Doce pela última vez. Pelo que escuta da família, ela não deve nadar no local novamente tão cedo. Conheça a história:

Reconstrução das casas

A onda de rejeitos destruiu as casas de 378 famílias em três distritos mineiros. O mais afetado foi Bento Rodrigues, que está em fase de reconstrução em novo local.

Passados sete anos da tragédia, a Renova anunciou que parte dos moradores já poderão ocupar as casas a partir de 2023. Até o momento, 78 ficaram prontas e 76 estão em processo de construção. A expectativa é que o ano termine com 120 imóveis concluídos no novo Bento, que vai receber 196 famílias.

 

 

Em Paracatu de Baixo, 79 famílias terão suas casas reconstruídas. Destas, a Renova começou as obras de 56. Nenhuma foi concluída. Já em Gesteira serão oito imóveis. O projeto da comunidade ainda aguarda homologação da Justiça para ser executado.

Outras 104 famílias optaram por receber suas casas fora dos reassentamentos. Dezenove imóveis já foram entregues. Segundo a Renova, 2,74 bilhões foram destinados aos reassentamentos até agosto de 2022.

No podcast a seguir, você vai acompanhar o momento em que uma moradora de Bento Rodrigues entrou na casa reconstruída pela primeira vez:

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