Medida Provisória sobre concessão florestal aprovada com apoio do governo não traz salvaguardas para impedir impactos sobre ribeirinhos, extrativistas e quilombolas. Texto segue agora à sanção presidencial

 

O plenário do Senado aprovou por votação simbólica, no final da tarde desta terça (2), o parecer do senador Jorge Kajuru (PSB-GO) sobre a Medida Provisória 1.151/2022, com alterações na Lei de Gestão Florestal (11.284/2006). A medida ameaça os territórios, o acesso aos recursos naturais e, assim, a qualidade de vida de povos e comunidades tradicionais, segundo avaliação do ISAAprovada no plenário da Câmara em 30/3, a MP segue agora à sanção presidencial.

O texto muda as regras das concessões florestais, abrindo a possibilidade de exploração de outros bens e serviços ambientais, além da madeira, como o patrimônio genético de plantas e animais, o conhecimento tradicional sobre eles, o manejo de fauna e a pesca. De acordo com a redação final, as concessões ainda poderão gerar créditos de carbono (saiba mais no quadro ao final da reportagem).

Os defensores da MP alegam que a lei precisa ser alterada porque o manejo sustentável e legal de madeira é inviável economicamente frente à concorrência da extração ilegal e predatória. Mantida a situação atual, um dos objetivos originais da legislação, que é impedir o desmatamento ilegal, deixa de ser cumprido. O problema seria resolvido com a ampliação das atividades passíveis de concessão.

Mas a medida acabou reavivando uma polêmica de 17 anos atrás, quando a Lei de Gestão Florestal foi instituída, sobre a proteção dos direitos das comunidades tradicionais. Ao longo dos anos, a implementação da norma provocou conflitos com algumas dessas populações, incluindo disputas pelo acesso a áreas e recursos e até sobre o reconhecimento oficial de alguns grupos.

A advogada do ISA Juliana de Paula Batista explica que, apesar da legislação de 2006 prever a necessidade da regularização prévia dos territórios tradicionais antes das concessões, seu texto e o da MP 1.151 deixam brechas para impactos negativos sobre os territórios e suas populações, que tendem a ser intensificados com a ampliação dos bens e serviços que podem ser objeto da concessão.

“Os temas regulados pela MP são extremamente complexos e deveriam ser objeto de discussões aprofundadas. O rito das MPs não permite maiores debates. Infelizmente, o Congresso Nacional validou mais um retrocesso que Bolsonaro nos deixou de herança”, afirma Batista.

“No estado de Rondônia temos um manejo que funciona há muitos anos já, na Flona do Jamari. É importante ter planos de manejo em áreas florestais, em áreas de reserva”, afirmou o senador ruralista Jaime Bagatolli (PL-RO), ao elogiar a MP. Ele defendeu ainda que as concessões fossem expandidas para as Terras Indígenas, o que a lei proíbe hoje e tampouco a MP 1.151 autoriza.

A Floresta Nacional (Flona) do Jamari (RO) é uma das áreas onde há conflitos entre concessionários e comunidades tradicionais. A especialista em biodiversidade do ISA Nurit Bensusan listou alguns exemplos como esse em artigo de opinião. Além de ter caça e pesca afetadas pelas concessões, nesses casos extrativistas, ribeirinhos e quilombolas foram ignorados por planos de manejo ou pelo Serviço Florestal Brasileiro (SFB), em especial nas Unidades de Conservação (UCs) das categorias Floresta Nacional e Floresta Estadual. O SFB é o órgão federal responsável por viabilizar as concessões florestais.

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Pátio de madeira retirada da Floresta Nacional do Jamari (RO) | Ibama
Pátio de madeira retirada da Floresta Nacional do Jamari (RO) 📷 Ibama
 Orientação do governo

Senadores governistas, como Rogério Carvalho (PT-SE) e Otto Alencar (PSD-BA), pediram mais tempo para discutir o assunto, em especial para que se possa aprovar primeiro uma lei que regulamente o mercado de carbono, norma que não existe hoje no país.

Apesar disso, a orientação do governo foi aprovar o texto vindo da Câmara, para evitar mais desgastes políticos, diante da luta por consolidar uma base parlamentar e sob risco de congestionar a fila de MPs a serem votadas, que incluem assuntos considerados mais prioritários, como a redesenho da Esplanada dos Ministérios. Se fosse alterada, a MP 1.151 teria de voltar à Câmara.

“Qualquer retrocesso na legislação ambiental o governo vetará”, garantiu o líder do governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP). “O governo não tem nenhum compromisso com qualquer agenda, qualquer dispositivo que ameace o meio ambiente”, completou.

Possível veto

Segundo as assessorias das lideranças do governo e do PT, o presidente Luís Inácio Lula da Silva pode vetar o artigo 4º da MP, que permite a geração de créditos de carbono e pagamento por serviços ambientais com o plantio de árvores de espécies exóticas e abre a possibilidade de legalização de desmatamentos irregulares cometidos em áreas de Reserva Legal (RL) de propriedades rurais.

O artigo 4º autoriza considerar como RL “áreas averbadas em matrícula com o objetivo de manutenção de estoque de madeira, designados como planos técnicos de condução e manejo ou outras designações análogas anteriores à conceituação de reserva legal” feita pela Lei nº 7.803/1989, que alterou o antigo Código Florestal, de 1965.

“Do jeito que está, esse dispositivo permite uma interpretação absurda de que seria desnecessário manter Reserva Legal para quem desmatou sua propriedade antes de 1989. Isso seria uma nova grande anistia e, ainda, geraria insegurança jurídica, por impor tratamento diferenciado entre os proprietários de terra, porque alguns teriam o dever de manter a reserva legal e outros, não”, adverte o consultor jurídico do ISA, Maurício Guetta.

Mercado de carbono

Guetta acrescenta que, como ficou, a MP permite ainda o concessionário lucrar com créditos de carbono e pagamento por serviços ambientais em áreas públicas sem qualquer adicionalidade, isto é, sem sequestro efetivo de carbono ou benefícios ecológicos concretos, por exemplo. “Esse risco pode e deve ser solucionado na regulamentação da nova lei”, preconiza.

O senador Rogério Carvalho também apontou os riscos da aprovação de uma legislação que permita a geração e venda de créditos de carbono sem que o tema esteja previamente regulamentado de forma mais abrangente.

“Não há possibilidade de crédito de carbono sem registro, sem titularidade de terra, sem titularidade de posse. Não há possibilidade sem uma agência para certificar e medir qual a disponibilidade de carbono numa determinada área”, alertou. “É preciso escriturar esse crédito, porque ele não pode ser comercializado mais de uma vez. Quem compra tem de ter a segurança que está comprando algo verdadeiro”, continuou. Ele apresentou um projeto para regular o tema no país.

Em artigo publicado no Valor Econômico e no site do ISA, o sócio fundador da organização Márcio Santilli também já tinha chamado atenção para os riscos da aprovação da MP 1.151 sem uma regulamentação prévia do mercado de carbono.

O que são créditos de carbono e o que o Brasil tem a ver com isso?

Empresas, instituições ou pessoas podem compensar as emissões de gases de efeito estufa, resultantes de empreendimentos e atividades econômicas, pela aquisição de créditos de carbono gerados por projetos de redução dessas emissões ou da captura de carbono da atmosfera. Exemplos são o reflorestamento ou o controle dos poluentes de uma indústria.

Ainda não há uma legislação nacional sobre o assunto. Já a Conferência da ONU sobre mudanças climáticas realizada em 2021 em Glasgow, Escócia, avançou na regulamentação do Artigo 6 do Acordo de Paris, o tratado internacional sobre o assunto. O dispositivo relaciona os mecanismos de cooperação entre países para implementar o mercado de carbono. Ele estabelece dois mecanismos: um prevê transferências de resultados da redução de emissões entre países; o outro permite que empresas desenvolvam iniciativas de redução de emissões ou remoção de carbono para gerar créditos de carbono comercializáveis com outras empresas ou com governos de outros países.

Contudo, as discussões sobre os créditos de carbono relacionados a desmatamento evitado ainda são embrionárias. Por ora, as negociações da ONU não definiram se florestas nativas fariam parte de nenhum desses mecanismos. Isso faz toda a diferença para o Brasil porque a maior parte das emissões de gases de efeito estufa do país originam-se na destruição das florestas e elas tem uma capacidade muito grande para armazenar e sequestrar carbono, o que poderia ser um trunfo nas negociações internacionais.

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