Marcelo Zelic: Comissão Nacional Indígena da Verdade, uma emergência civilizatória

28/08/2023

Fonte:https://cimi.org.br/2023/08/marcelo-zelic-comissao-indigena-verdade-emergencia-civilizatoria/

Em texto originalmente publicado no relatório de Violência de 2022 do Cimi, o pesquisador Marcelo Zelic delineia suas propostas acerca das atribuições, funcionamento e organização da Comissão

ATL 2023. Foto: Marina Oliveira/Cimi

ATL 2023. Foto: Marina Oliveira/Cimi

O texto abaixo, originalmente publicado no relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2022, foi um dos últimos produzidos pelo pesquisador Marcelo Zelic (1963-2023), falecido em maio deste ano. Zelic dedicou sua vida à preservação da memória, através do trabalho de documentação, e à luta pela criação de mecanismos de não repetição das violações de direitos humanos contra os povos indígenas.

Nos últimos anos, ele lutou pela criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade (CNIV) para a apuração e reparação destas violações. A edição e revisão do texto, agora disponibilizado no site do Cimi, contou com a colaboração de Ana C. Zema.

No dia 29 de agosto, na Universidade de Brasília (UnB), o encontro Povos indígenas e Justiça de Transição: Memória, Verdade, Reparação e Não-repetição dá sequência às reflexões e à luta pela efetivação da CNIV.

Nesta semana, o Supremo Tribunal Federal (STF) retoma o julgamento sobre o marco temporal, tese nefasta que pretende anistiar as violências praticadas contra os povos indígenas antes de 1988. A discussão sobre memória, reparação e a não repetição de violações do passado é fundamental para garantir a efetivação dos direitos constitucionais dos povos originários.

 

“Art. 11. A Comissão Nacional da Verdade terá prazo até 16 de dezembro de 2014, para a conclusão dos trabalhos, e deverá apresentar, ao final, relatório circunstanciado contendo as atividades realizadas, os fatos examinados, as conclusões e as recomendações.” (grifo nosso)

Lei 12.528/2011, que cria a Comissão Nacional da Verdade (CNV)

 

“Por todos os fatos apurados e analisados neste texto, o Estado brasileiro, por meio da CNV, reconhece a sua responsabilidade, por ação direta ou omissão, no esbulho das terras indígenas ocupadas ilegalmente no período investigado e nas demais graves violações de direitos humanos que se operaram contra os povos indígenas articuladas em torno desse eixo comum. Diante disso, são apresentadas algumas recomendações.” (grifo nosso)

Relatório Final da CNV – Graves Violações de Direitos Humanos Contra os Povos Indígenas

 

Por Marcelo Zelic[1]

A criação da Comissão Nacional Indígena da Verdade (CNIV), abreviadamente chamada Comissão da Verdade Indígena, é medida necessária do Executivo brasileiro que resulta de recomendação contida na Lei 12.528/2011, de 18 de novembro de 2011, que criou a Comissão Nacional da Verdade (CNV) e que, ao terminar os trabalhos em 2014, deixou à sociedade brasileira o relatório final e 49 recomendações ao Estado brasileiro, sendo 29 registradas no Tomo I pelo colegiado e 20 publicadas no Tomo II por membros da CNV responsáveis pela investigação de tema específico; dessas 20, 13 voltadas aos povos indígenas e sete às comunidades LGBTQIA+.

Em audiência pública realizada em 26 de abril de 2023 na Câmara dos Deputados pela Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial sobre o relatório Fortalecimento da democracia: Monitoramento das recomendações da Comissão Nacional da Verdade,[2] o jurista Pedro Dallari, coordenador da CNV e representando os demais comissionados e comissionadas, mencionou as recomendações da Comissão Nacional da Verdade, dando ênfase à importância da CNV ter se constituído como um órgão oficial do Estado brasileiro e destacando que seu relatório final e suas recomendações, entregues à Presidência da República, ao presidente da Câmara dos Deputados, ao presidente do Senado Federal, ao presidente do Supremo Tribunal Federal e ao Procurador-Geral da República, gera, obviamente, um grau de obrigação, de responsabilidade para os órgãos do Estado brasileiro, de reagir a ele”.[3] Pedro Dallari esclarece que acolher as recomendações da CNV é um imperativo legal aos poderes da República:

“A Comissão Nacional da Verdade foi um órgão do Estado brasileiro, criado por uma lei do Congresso, aprovada pelo Congresso Nacional e que foi sancionada pela presidente Dilma Rousseff. [… ] Essa particularidade da Comissão Nacional da Verdade no Brasil é muito relevante, o fato de que ela foi criada por lei, aprovada pelo parlamento, por praticamente a unanimidade dos seus membros, e que, portanto, se constituiu como um órgão do Estado brasileiro. […] Foi um órgão que se revestiu de todos os atributos inerentes a uma estrutura oficial do Estado brasileiro. […] Não apenas a comissão foi um órgão oficial do Estado brasileiro, mas o seu relatório é um documento oficial do Estado brasileiro. […] Trata-se de um documento oficial do Estado brasileiro e é um documento, que tendo essa característica, gera, obviamente, um grau de obrigação, de responsabilidade para os órgãos do Estado brasileiro, de reagir a ele”.

O relatório final da CNV, entregue em 10 de dezembro de 2014 e publicado no Diário Oficial da União através da Portaria Interministerial nº 1321, de 29 de setembro de 2015[4]reconheceu a responsabilidade do Estado brasileiro, por ação e omissão, pelo esbulho das terras indígenas, patrimônio da União, ocupadas ilegalmente no período investigado de 1946 a 1988. Apontou também a centralidade do esbulho territorial indígena como eixo comum de muitas das graves violações de direitos humanos praticadas contra os povos indígenas que foram apuradas e recomendou a adoção de medidas que removam os impedimentos atuais para que o Estado brasileiro efetive as demarcações das terras indígenas, direito originário dos povos indígenas reconhecido na Constituição, como medida de reparação, e, enfatizou a CNV, ser esta a principal medida reparadora a ser efetivada pelo Estado brasileiro.

“Regularização e desintrusão das terras indígenas como a mais fundamental forma de reparação coletiva pelas graves violações sofridas pelos povos indígenas no período investigado pela CNV, sobretudo considerando-se os casos de esbulho e subtração territorial aqui relatados, assim como o determinado na Constituição de 1988”[5]

No conjunto das 13 recomendações indígenas apresentadas pela comissionada Maria Rita Kehl ao Estado brasileiro, está apontada a necessidade de instalação da Comissão Nacional Indígena da Verdade “exclusiva para o  estudo das graves violações de direitos humanos contra os povos indígenas, visando aprofundar os casos não detalhados no presente estudo[6], para dar sequência aos trabalhos de inclusão dos povos indígenas no processo de justiça de transição no Brasil e, assim, efetivar a democracia nas relações interétnicas em nosso país, porque muitos casos ficaram de fora do relatório final da CNV.

A criação da CNIV por decreto do Executivo brasileiro, além de ser uma medida de cumprimento das recomendações recebidas por parte deste poder da República, aponta aos demais entes federativos e órgãos do Estado, a quem também são destinados o relatório final e as recomendações da CNV, a necessidade de um esforço conjunto de continuidade do processo de justiça de transição aos povos indígenas, para fazer frente às inúmeras repetições de graves violações de direitos humanos contidas no relatório final da CNV e as praticadas pelo último governo brasileiro entre 2019 e 2022, bem como à emergência civilizatória vivida no Brasil para o fortalecimento de nossa democracia.

Os conflitos vividos pelos povos indígenas em 2023 mantêm relação direta com a conduta lesiva do Estado em desrespeito aos direitos territoriais e aos direitos constitucionais dos povos indígenas e expõem práticas arraigadas no Estado brasileiro que, ainda hoje, segue protelando a efetivação desses direitos, afrontando a Constituição e usurpando o patrimônio da União de usufruto exclusivo dos povos indígenas; práticas estas que relembram, quando não repetem, os crimes cometidos por agentes de Estado, enquanto tutores dos povos indígenas até 1988, que foram denunciadas e que estão fundamentadas na documentação apresentada no relatório final da CNV.

Os casos recentes revelam a continuidade dessas práticas, como acontece com o povo Yanomami, em Roraima, que sofre a invasão garimpeira e a emergência sanitária gerada pela mineração ilegal; com os Pataxó Hã-Hã-Hãe e os Pataxó do extremo sul da Bahia, que vivem um conflito territorial que se arrasta há 40 anos; como também ocorre com os Macuxi e Wapichana de Roraima, que tiveram suas terras demarcadas em ilhas; ou ainda os Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul, que seguem desterrados ou confinados em diminutas áreas para sua existência e em conflito permanente pela retomada e demarcação de seus territórios; ou com os Avá-Canoeiro do Araguaia, do estado de Tocantins; bem como com os Xetá do Paraná, que aguardam há anos o resultado de decisão definitiva da justiça brasileira, que venha a fazer valer o artigo 231 da Constituição Federal para que possam retornar de um exílio territorial e superar a diáspora produzida pela violência ocorrida durante a ditadura militar. Além destes, muitos outros povos, que não tiveram seus casos investigados pela CNV, vivem ciclos permanentes de repetição de violências e negação de direitos constitucionais.

São estes alguns exemplos que confirmam a importância de, por meio da Comissão Nacional Indígena da Verdade, procurarmos estabelecer um diálogo de superação institucional da violência estruturada contra os povos indígenas em torno da demarcação de seus territórios que, cotidianamente, atinge gerações de indígenas dos 305 povos existentes no Brasil, cujos membros nascem, crescem e morrem sem conhecer a solução dos conflitos e tendo suas existências marcadas pela busca do devido respeito à diversidade étnica que representam enquanto povo brasileiro.

O direito à memória e à verdade é capaz de estimular ações implicando os demais eixos da justiça de transição, fomentando as mudanças de conduta do Estado perante o direito indígena e sua efetivação

Manifestação indígena em Brasília (STF), junho de 2023. Foto: Hellen Loures/Cimi

Manifestação indígena em Brasília (STF), junho de 2023. Foto: Hellen Loures/Cimi

Como testemunho dos benefícios da justiça de transição aos povos indígenas no restabelecimento da Justiça e da Constituição, o caso do Reformatório Krenak, citado em recomendação da CNV, demonstra que o direito à memória e à verdade é capaz de estimular ações implicando os demais eixos da justiça de transição, acionando múltiplos atores e fortalecendo as demandas de reparação no judiciário que proporcionam passos concretos rumo à não-repetição das graves violações de direitos humanos, fomentando as mudanças de conduta do Estado perante o direito indígena e sua efetivação.

A primeira Ação Civil Pública baseada nas recomendações indígenas da CNV foi protocolada pelo Ministério Público Federal (MPF) de Minas Gerais, tendo decisão favorável pela Justiça brasileira, que determinou o dever de reparação ao Estado brasileiro pelos crimes cometidos durante a ditadura militar contra o povo Krenak. A decisão incluiu o dever de demarcar a Terra Indígena (TI) Krenak Sete Salões, esbulhada em 1972, quando este povo sofreu remoção forçada e foi transferido para viver em regime de campo de concentração no Reformatório Indígena Krenak, cadeia indígena criada em 1969 pelo Estado brasileiro. Vale ressaltar que centenas de indígenas de, ao menos, 23 povos vindos de todas as partes do país, ficaram presos nesta unidade prisional e que seus casos, as torturas que sofreram e os desaparecimentos forçados que ocorreram, não foram estudados nos trabalhos da CNV.

Em setembro de 2021, a pedido do MPF, a 14ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária de Minas Gerais (SJMG), em decisão, condenou:

  1. A União, a Funai e o estado a realizar, em até seis meses, cerimônia para reconhecer as violações de direitos dos povos indígenas seguida de pedido público de desculpas ao povo Krenak, com divulgação nos meios de comunicação e canais oficiais;
  2. a Funai a concluir o processo administrativo de identificação de delimitação da Terra Indígena Krenak de Sete Salões, considerada sagrada para os indígenas, no prazo de seis meses, e a estabelecer ações de reparação ambiental das terras degradadas pertencentes aos Krenak;
  3. a Funai e o estado de Minas a implementar, com participação do povo Krenak, ações voltadas ao registro, transmissão e ensino da língua Krenak por meio do Programa de Educação Escolar Indígena;
  4. a União a reunir e disponibilizar na internet, em até seis meses, toda a documentação relativa às violações dos direitos humanos dos povos indígenas, para livre acesso do público.[7]

A Funai do ex-presidente Bolsonaro, governo determinado em não reconhecer um centímetro de terra indígena – postura que colide frontalmente com a Constituição e passível de ação judicial –, em 2022 se opôs ao cumprimento da sentença, alegando em juízo que o prazo de seis meses determinado na decisão “desconsidera os parcos recursos orçamentários, carência de servidores qualificados e a própria natureza complexa dos trabalhos do processo demarcatório”[8], utilizando o recorrente argumento protelatório de situação precária do órgão indigenista, diga-se, gerada pelo próprio Estado, para o não reconhecimento do direito indígena.

Com apenas quatro meses de novo governo eleito nas urnas, em 28 de abril de 2023, o presidente Lula retomou o papel constitucional do Estado frente à postura ilegal de seu antecessor, homologando 6 Terras Indígenas enviadas pelo recém-criado Ministério dos Povos Indígenas. No mesmo dia, a presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana, despachou o ato de identificação e delimitação da TI Krenak de Sete Salões, no município de Resplendor (MG), reconhecendo o direito originário sobre essas terras. Rompendo com a postura protelatória, deu cumprimento à sentença da 14ª Vara Federal Cível da SJMG e reconheceu o trabalho da Comissão Nacional da Verdade e do MPF, efetivando uma de suas recomendações expressas na decisão judicial.

A mudança de conduta dos agentes públicos que possuem responsabilidades no processo de demarcação de terras indígenas é, como vimos com o caso Krenak de Sete Salões, fator fundamental para a retirada das travas impostas por interesses alheios ao artigo 231 da Constituição, promovendo a efetivação de direitos. Assim, cabe à Comissão Nacional Indígena da Verdade, nas investigações de graves violações de direitos humanos, para os casos acolhidos em seu colegiado, levantar as condutas ilegais de agentes públicos responsáveis por essas violações no passado e identificar suas permanências no presente para promover tanto os desdobramentos cabíveis no campo das reparações devidas, como na criação de mecanismos de não-repetição, para que cessem essas práticas de protelação de direitos indígenas.

Diferente da maneira como foi estruturada a CNV em 2012, indicando sete comissionados e comissionadas para coordenar e realizar os trabalhos de investigação junto a uma equipe operacional de assessoria; a CNIV, ao ser composta por um colegiado de instituições ligadas ao Estado brasileiro, povos indígenas e sociedade civil, com indicação de pessoas desses setores ligadas à temática e à justiça de transição, inova no formato e possibilita uma ação integrada em sociedade, favorecendo o desenvolvimento de um processo transicional que produz diálogo entre os envolvidos para a solução dos problemas e para o fortalecimento democrático.

A Comissão Nacional Indígena da Verdade tem por função realizar a investigação de casos de graves violações de direitos humanos de 1946 a 1988[9] que atentaram contra a pessoa do indígena e de seus apoiadores, contra as aldeias, os povos, o território, a cultura, a crença, a organização social, o meio ambiente circunscrito às comunidades ou ao território e aos direitos constitucionais dos povos indígenas em regime tutelar até 1988.

A proposta de organograma da CNIV, formado por uma Coordenação Geral e uma equipe técnica para auxiliar os trabalhos e por um Colegiado de Comissionados composto por órgãos do Estado brasileiro, representações dos povos indígenas e entidades da sociedade civil de caráter indigenista e de direitos humanos, responsáveis pela estruturação da Rede de Comissões da Verdade Indígena (Rede CVI), ganha em dinamismo e envolvimento, promovendo uma maior cobertura ao levantamento e investigação dos casos de graves violações de direitos humanos por povos indígenas, cujo casos concluídos serão submetidos ao Colegiado de Comissionados para abertura de processo.

Rede de Comissões da Verdade Indígena é uma rede colaborativa, com o compromisso político, ético e de responsabilidade moral para com a memória e a verdade, a reparação, a justiça e a não-repetição, constituindo-se em uma ação solidária junto aos povos indígenas atingidos pelas graves violações de direitos humanos por ação e omissão do Estado brasileiro.

O estudo participativo na construção de casos através de Comissões da Verdade Indígena, criadas com abrangências variadas por povo, por região, por estado e por temas voltados às investigações de “crimes de tutela”, apresenta um avanço e se diferencia da dinâmica utilizada pela CNV, ao estabelecer um trabalho coletivo em sociedade, adotando como dinâmica a submissão de casos, como o faz a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, dando início a um processo interno após acolhimento de cada caso.

As Comissões da Verdade Indígena são, portanto, a porta de entrada de casos a serem analisados pelo Colegiado de Comissionados e serão credenciadas para atuar mediante termos de cooperação com entidades indígenas, indigenistas, da sociedade civil, universidades e setores diversos do Estado brasileiro que venham a criá-las.

O estabelecimento da Comissão Nacional Indígena da Verdade é um passo fundamental para que avancemos enquanto sociedade rumo a um país inclusivo, diverso, plural, respeitador de direitos e democrático de fato

Manifestação indígena em Brasília (STF), junho de 2023. Foto: Verônica Holanda/Cimi

Manifestação indígena em Brasília (STF), junho de 2023. Foto: Verônica Holanda/Cimi

Assim, setores do Estado brasileiro, junto com os povos indígenas e a sociedade civil, se dedicam em um grande mutirão cívico, ao levantamento de casos, reunião de documentação probatória, coleta de depoimentos dos atingidos e atingidas, tendo como missão central a escuta das vítimas, a sistematização de casos e sua submissão à Coordenação Geral da CNIV para deliberação em colegiado do acolhimento das denúncias, aprofundamento de investigação e encaminhamentos para o desenvolvimento dos demais eixos da justiça de transição. São, portanto, objetivos da Comissão Nacional Indígena da Verdade:

  1. Implementar um processo de justiça de transição colaborativo voltado aos 305 povos indígenas existentes no Brasil e aos povos isolados, visando desenvolver simultaneamente os quatro eixos da justiça transicional, que são: memória e verdade, reparação, não-repetição e responsabilização (cível ou criminal), para a apuração, por povo indígena, de casos de graves violações de direitos humanos ocorridos em todo território nacional entre 1946 a 1988 e identificar casos de repetição das mesmas graves violações e a permanência de práticas que atentam contra os direitos constitucionais indígenas no período pós Constituinte 87/88, que estabelecem o princípio do reconhecimento da exclusividade do uso do território aos povos indígenasaté nosso presente.
  2. Fomentar a criação de Comissões da Verdade Indígena por povo indígena, por região, por estado, por temáticas conforme os tipos de “crimes de tutela” e nas universidades para o levantamento e investigação de casos de graves violações de direitos humanos praticados contra os povos indígenas pelo Estado brasileiro, por ação e omissão, e pela sociedade envolvente.
  3. Fazer consulta aos povos indígenas atingidos para obter seu consentimento, conforme determina a Convenção 169 da OIT, ou seguindo os protocolos de consulta já estabelecidos por cada povo, sobre o acolhimento do caso submetido à CNIV e as reparações devidas para cada caso de graves violações de direitos humanos investigados pela Comissão Nacional Indígena da Verdade.
  4. Fazer cumprir as 13 recomendações indígenas apresentadas ao Estado brasileiro em 10 de dezembro de 2014, contidas no relatório final da Comissão Nacional da Verdade (Tomo II, Texto 5), documento de Estado resultado do cumprimento da Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011.
  5. Tornar público através de portal da CNIV os casos recebidos, em estudo, concluídos e seus desdobramentos; os eventos realizados e os depoimentos coletados, quando não houver restrição.
  6. Apresentar, ao final de cada período de investigação, relatório circunstanciado dos casos recebidos, acolhidos, levantados e encaminhamentos dados por eixos da justiça transicional nos âmbitos do Executivo, Legislativo, Judiciário brasileiro e do Ministério Público Federal, identificando, em balanço, os casos acolhidos em aberto e sem conclusão pela CNIV, bem como povos não alcançados pelas investigações, para justificação de renovação de prazo de realização dos trabalhos.

 No encerramento do 19º Acampamento Terra Livre de 2023, a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, defendeu em seu discurso e na presença do presidente Lula a criação da Comissão da Verdade Indígena para promover a reparação pelo Estado das violências sofridas pelos povos originários no país e para superarmos esse eterno ciclo de repetição de graves violações de direitos humanos, cujo ponto central que alimenta a violência é o desrespeito aos direitos constitucionais e a ausência de demarcação dos territórios indígenas. “A garantia da posse plena dos territórios pelo Estado aos seus povos é também uma forma muito importante de reparação dessas violações”, disse a ministra.

“Os povos indígenas no Brasil sofreram graves violações de seus direitos humanos em diversos períodos da história e nós precisamos reconhecer isso e avançar nas reparações necessárias e possíveis aos povos indígenas. Criar a Comissão da Verdade Indígena é uma medida fundamental para promover o início dessa reparação e para garantir que não haja repetição desse vergonhoso episódio de nossa história. A garantia da posse plena dos territórios pelo Estado aos seus povos é também uma forma muito importante de reparação dessas violações”.[10]

A justiça de transição aplicada aos povos indígenas e centrada na reparação e na não-repetição, eixos centrais dos desdobramentos das investigações no campo da memória e da verdade, sobre as graves violações de direitos humanos sofridas pelos povos indígenas é uma emergência civilizatória e o estabelecimento da Comissão Nacional Indígena da Verdade é um passo fundamental para que avancemos enquanto sociedade rumo a um país inclusivo, diverso, plural, respeitador de direitos e democrático de fato.

Construir o “Nunca mais um Brasil sem nós povos indígenas” prescinde da instalação da Comissão Nacional Indígena da Verdade no Brasil. Diga ao povo que avance, ecoou em Brasília ao final do 23º Acampamento Terra Livre. Com a CNIV avançaremos na defesa dos direitos humanos dos povos indígenas e nas emergências climáticas e civilizatórias que vivemos.

 


[1] Marcelo Zelic (1963-2023) foi membro da Comissão Justiça e Paz de São Paulo e coordenador do Armazém Memória. Foi um dos responsáveis pela inclusão do tema indígena na CNV e um dos principais defensores da criação de uma Comissão da Verdade Indígena.

[2] Ver relatório “Fortalecimento da democracia: Monitoramento das recomendações da Comissão Nacional da Verdade”, realizado pelo Instituto Vladimir Herzog e publicado em março de 2023. Disponível aqui.

[3]  Íntegra da exposição do jurista Pedro Dallari na audiência pública na Câmara dos Deputados. Disponível aqui.

[4]  Portaria Interministerial nº 1203 de 29/09/2015. Disponível aqui.

[5]  Recomendações do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade: TOMO II, Textos Temáticos,Texto 5, página 253, Dezembro de 2014. Disponível aqui.

[6]  Recomendações do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade: TOMO II, Textos Temáticos, Texto 5, página 253, Dezembro de 2014. Disponível aqui.

[7]  Um ano e meio após condenação de Funai, União e MG, povo Krenak ainda aguarda reparação por violações na ditadura militar. G1, 28/04/2023. Disponível aqui.

[8]  Idem.

[9]  A CNIV adota o mesmo recorte temporal definido na Lei 12.528/2011, uma vez que a investigação se dá em função do cumprimento da terceira recomendação da CNV.

[10] Discurso de Sônia Guajajara no ato final do ATL 2023. Disponível aqui.

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