Acordo teria ilegalidades e beneficiaria só a Educafro e o Centro Santo Dias, em desacordo com a Lei da Ação Civil Pública, além de dar à cifra milionária o caráter de doação, não de indenização, abrindo caminho para a multinacional deduzir montante de seu imposto

O Coletivo Cidadania, Ação Antirracista e Direitos Humanos, composto pelos advogados Onir Araújo, Hamilton Ribeiro, André Moreira, Cláudio Latorraca, Rodrigo Sérvulo e Dojival Vieira, que representam a Sociedade Soueuafrobrasileira e o COADE (Coletivo de Advogados para a Democracia) está questionando, e tentando invalidar, um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) no valor de R$ 115 milhões assinado entre o Carrefour, a Educafro e o Centro Santo Dias de Direitos Humanos, em julho deste ano, relativo ao caso do assassinato de João Aberto Silveira Freitas, ocorrido numa das lojas da multinacional francesa em Porto Alegre, às vésperas do Dia da Consciência Negra de 2020. Freitas, que era negro, foi morto por asfixia, após receber vários golpes na cabeça, por dois seguranças do supermercado, um deles policial militar, quando saía do estabelecimento.

A Educafro, entidade que faz um importante trabalho de propiciar acesso à educação de qualidade a jovens negros, promovendo inclusão, e que atua em várias regiões do país, surgiu como parte interessada logo após a ocorrência do homicídio de viés racial que abalou o Brasil, conforme explica um dos advogados que questionam o TAC.

“O caso Beto Freitas ocorre na véspera do feriado do Dia da Consciência Negra, uma quinta-feira (19/11). O dia seguinte era uma sexta, feriado, e na sequência um sábado e um domingo. Na segunda-feira, dia 23, primeiro dia útil após o trágico ocorrido, a Educafro já protocolou uma Ação Civil Pública manifestando interesse no episódio”, explicou Dojival Vieira.

A ação que pede a revisão do TAC, ajuizada em 30 de setembro, de acordo com as entidades que a impetraram, afirma que o Termo de Ajustamento de Conduta firmado pela rede de varejo e as entidades, uma ligada à educação de jovens afrodescendentes e a outra de promoção e defesa dos Direitos Humanos, vinculada à Arquidiocese de São Paulo, orientado e com a participação da Defensoria Pública da União, da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul, do Ministério Público Federal e do Rio Grande do Sul e do Ministério Público do Trabalho, não estaria respeitando a Lei da Ação Civil Pública (7.347/85), ao destinar os valores milionários especificamente à Educafro e ao Centro Santo Dias, em vez de dirigi-los ao Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Conapir), ou a conselhos do mesmo tipo em nível regional, como prevê o Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/10), que alterou a Lei da Ação Civil Pública, legislação que determina, em ações de outras naturezas (assim como previa para questões étnico-raciais até a promulgação do Estatuto da Igualdade Racial, em 2010) que recursos provenientes de indenizações deve ser depositados em nome do Fundo de Defesa de Direitos Difusos.

O Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, um organismo vinculado ao Ministério da Justiça e da Segurança Pública, é composto por inúmeros setores do governo e representantes de entidades civis que, reconhecida e oficialmente, representem os segmentos sociais afetados por esse tipo de conduta discriminatória e criminosa. No texto legal, este deve ser o destino de valores oriundos de ações e acordos judiciais em casos do tipo, ficando o órgão responsável pela destinação dos recursos em prol de um determinado setor social, com exceção dos litígios envolvendo racismo e discriminação, amparados pelo Estatuto de Igualdade Racial.

Dojival Vieira questiona qual foi o entendimento dado não só pela Educafro, mas por todos os órgãos públicos envolvidos na assinatura do TAC, para que os valores referentes ao caso Beto Freitas tenham ido parar num fundo privado.

“O que me causa curiosidade é saber qual é a explicação técnica, ou qual foi o drible, de todos os envolvidos, para que o montante que deveria ser revertido para um fundo público fosse gerido por um fundo totalmente privado”, questiona o advogado.

Onir Araújo, outro advogado que representa os grupos que lutam por direitos da população negra, segue na mesma linha e explica que a lei é clara com relação à destinação de recursos provenientes de casos como o de Beto Freitas.

“É importante que claro que as ações promovidas por não têm o condão de questionar a legitimidade que entidades têm de assinar termos de ajustamento de conduta, ou de ajuizar ações civis públicas, o que nós estamos questionando, além da cláusula que praticamente isenta o Carrefour de culpa, é a destinação dos valores, como está apresentado no TAC. O artigo 13° da Lei das Ações Civis Públicas, com a inclusão, em 2010, do parágrafo 2°, prevê que valores oriundos de acordos ou de TAC’s, como esse, ou ainda de sentenças, têm que ir obrigatoriamente para um fundo ou nacional, como o Conapir (Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial), ou a conselhos estaduais, como existem aqui no Rio Grande do Sul”, esclarece Onir.

Os advogados que contestam as tratativas também alertam para uma prática referida como “ato simulado”, que se configura numa tentativa de tergiversar e driblar o próprio propósito da Ação Civil Pública, uma vez que o TAC assinado transformou o que seria uma indenização em “doação”, permitindo que o Carrefour deduza esses valores do seu imposto, além de eximir a empresa de responsabilidade pelo trágico e repugnante episódio, abrindo caminho para que esta decisão sirva de prova futuramente na ação penal que corre na Justiça e que tem por objetivo apurar a culpa da rede de supermercados no homicídio.

Pelo TAC assinado entre o Carrefour, a Educafro e o Centro Santo Dias, R$ 68 milhões seriam destinados a bolsas de estudos para jovens negros, enquanto os advogados que realizaram o acordo representando as duas entidades receberiam R$ 3,4 milhões, embora os defensores pleiteiem agora na Justiça o recebimento de um valor muito maior, que ficaria entre R$ 11,5 e R$ 23 milhões. À viúva de Silveira, Milena Borges Alves, caberia apenas R$ 2 milhões, mesma quantia destinada a empresas de auditoria que acompanharão o trajeto legal percorrido pelo dinheiro. Cabe salientar que a companheira da vítima já recebeu uma indenização paga pelo multinacional, que se especula ser entre R$ 1,8 e R$ 2 milhões, visto que as tratativas que definiram o montante são confidenciais.

O problema não seria só esse: o “ato simulado”

A questões envolvendo o destino dos R$ 115 milhões não seria o único litígio a deflagrar a guerra judicial entre as entidades representadas pelo coletivo de advogados do movimento negro, a Educafro e o Centro Santo Dias, conforme relatado no início da reportagem.

Nos termos do texto assinado pelo Carrefour e pelas entidades beneficiadas, há dois pontos que despertaram a indignação dos autores do questionamento. Eles seriam, tecnicamente, um “ato simulado”, que ocorre quando o propósito de um acordo ou negociação disfarça seus verdadeiros propósitos e seu real objetivo.

O primeiro deles refere-se ao ponto número 5.2 do TAC, onde se lê que “Todas as obrigações assumidas pelos compromissários neste Termo não importam ato de racismo, discriminação ou violência e não poderão ser interpretados nesse sentido”. Ou seja, o instrumento acordado entre a rede de supermercados e as duas entidades, assentido pelo Ministério Público em várias esferas e pela Defensoria Pública, praticamente reconhece a inocência da multinacional francesa sob o ponto de vista penal.

“A Clausula 5.2 desse Termo de Ajuste de Conduta implica, e para perceber isso basta uma leitura singela, o não reconhecimento de qualquer responsabilidade por ato de discriminação ou racismo por parte do Carrefour”, denuncia Onir.

Para juristas e advogados, o trecho certamente pode ser utilizado pelo Carrefour em sua defesa na esfera penal, quando o Judiciário apurará se a empresa envolvida incorreu em crime e em qual grau, caso seja considerada culpada.

O outro ponto diz respeito ao pagamento dos R$ 115 milhões, que pelo TAC não seria a título de indenização, mas sim uma doação. De acordo com os representantes da Soueuafrobrasileira e do coletivo Advogados Pela Democracia, que buscam a revisão do termo, o Carrefour poderia, em face da legislação, enquadrar os valores como uma forma de renúncia fiscal, permitindo deduzir esse valor do Imposto de Renda da gigante do varejo.

Se tal possibilidade se concretizar, na prática, o Carrefour teria um termo assinado e anuído por várias esferas do Ministério Público e pela Defensoria Pública, que tem caráter executivo extrajudicial e indiscutível previsão e validade legais, para se declarar criminalmente inocente no caso do brutal assassinado de João Alberto Freitas e ainda encerrar o episódio sem desembolsar um centavo, uma vez que os R$ 115 milhões previstos no TAC seriam descontados do imposto recolhido pelo fisco brasileiro.

“Os desdobramentos técnico-jurídicos em função disso, implicam em que esses valores de R$ 115 milhões, distribuídos naquelas cláusulas do TAC, podem levar à conclusão de que não há ali uma indenização pela ocorrência de um ato ilícito, envolvendo a questão étnico racial, mas sim assumindo um caráter de doação. O que ocorre? Tecnicamente, no exercício dos próximos anos fiscais, o Carrefour, que só no 2° semestre de 2020, em plena pandemia, teve um lucro líquido em torno de R$ 2 bilhões, ele vai poder abater até 2% de seu imposto de renda. Na prática, o contribuinte é que de certa forma é vai arcar com o pagamento desses valores. Se você levar em consideração o lucro líquido médio do Carrefour, em menos de dois anos já terá deduzido esse valor e o contribuinte é ficaria com essas despesas”, conclui o advogado.

Coalizão Negra por Direitos se manifesta

O coletivo Coalizão Negra por Direitos, que congrega entidades e grupos que lutam pela promoção da igualdade racial, se manifestou sobre a assinatura do TAC e também considera que as tratativas não resultaram num acordo correto, criticando o que considera uma “precificação da vida de pessoas negras, frisando que as entidades beneficiadas pelo dinheiro a ser liberado pelo Carrefour não representam a totalidade da comunidade negra e dos organismos que encampam a luta negra no Brasil”.

“Reforçamos que a Coalizão Negra não tem anuência com iniciativas que precificam a vida de pessoas negras.  Ao mesmo tempo, aproveitamos a ocasião para chamar a sociedade para acompanhar detalhadamente o desdobramento social deste Termo de Ajustamento de Conduta, sobretudo quando temos ciência que instrumentos deste tipo raramente efetuam seu objetivo. A reparação do trauma social causado com a persistência da brutalidade e da desumanização dos corpos negros não se dará a partir do aporte financeiro em troca de nossas vidas.  As entidades do movimento social negro que celebraram esse tipo de acordo, o fizeram, repetimos, em seu próprio nome, não representando a posição do movimento social negro de conjunto”, diz uma nota do coletivo sobre o assunto.

O que determina o TAC sobre os valores

A divisão da doação milionária, conforme o acordo firmado entre as partes, além dos R$ 68 milhões direcionados a bolsas de estudos, prevê ainda R$ 7,5 milhões a serem gastos em ações educativos contra o racismo e na promoção da cultura negra, R$ 8 milhões para incubadoras de projetos de empreendedores negros, R$ 6 milhões em cursos de idiomas, inovação e tecnologia, além de R$ 4 milhões a serem divididos igualmente para a revitalização do Cais do Valongo, no Rio de Janeiro (local que foi ponto de chegada dos escravos no país e o mais movimentado das Américas) e para fomentar a produção agrícola e artesanal de comunidades quilombolas.

O que dizem os envolvidos

Educafro

Em relação ao fato de a lei prever que os valores doados pelo Carrefour devem ser encaminhados para um fundo público, atrelado ao Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial, a Educafro afirmou que “É falsa a afirmação de que as entidades que moveram a ação sejam destinatárias de qualquer valor econômico decorrente do acordo. Também não procede que haja indenização em dinheiro a ser transferida para qualquer fundo. O acordo foi todo embasado em obrigações de fazer, tais como concessão de bolsas de estudo e auxílio permanência, promoção do empreendedorismo negro etc. Tudo isso tem custo e o montante dos gastos necessários para fazer face a essas obrigações foi orçado em R$ 115 milhões. Não há, tecnicamente, definição de pagamento de indenização. Por isso não cabe falar em remessa de valores ao fundo instituído pelo Estatuto da Igualdade Racial. Por outro lado, a ação não se refere a um dano de alcance estadual, mas nacional. Então se houvesse indenização em dinheiro teria que ser remetida ao fundo nacional, cuja gestão hoje é definida pelo governo federal, abertamente racista. Estaríamos financiando políticas racistas se assim houvesse sido decidido”.

Acerca dos valores previstos no TAC serem classificados como “doação” e não “indenização”, a Educafro alegou que “não procede a afirmação de que o Carrefour fará doações. Ele cumprirá obrigações de fazer firmadas em um acordo homologado por sentença judicial. Isso não é doação.” Ainda no que diz respeito à “doação”, e uma possível renúncia fiscal por parte da multinacional francesa, a entidade disse “Como não há doação alguma, mas o cumprimento de deveres assumidos perante o Judiciário, não haverá qualquer vantagem tributária para o Carrefour”.

Em relação ao tópico que isenta o Carrefour de responsabilidade na trágica morte de João Alberto Silveira Freitas, que potencialmente poderia ser usado para que a empresa futuramente se coloque como inocente, na esfera penal, a Educafro explicou que “Num acordo não se trata do mérito da demanda. As partes chegam a uma solução para o caso e, com isso, não há uma condenação propriamente dita. Isso é bem primário. O Carrefour suportará o maior ônus financeiro já imposto a uma empresa na história da América Latina. Felizmente conseguimos abrir esse precedente. Grandes violadores de direitos precisam sofrer grandes danos na sua esfera econômica. Foi isso o que conseguimos fazer. É algo a ser celebrado, uma vitória histórica. Acordos dessa natureza não possuem nenhum impacto na esfera penal, que é autônoma. O acordo nem trata disso, nem poderia tratar, porque no âmbito criminal a ação cabível é de natureza pública e não depende da autorização de terceiros. Não é à toa que os assassinos seguem presos e irão a julgamento. Recentemente o Supremo Tribunal Federal rejeitou os habeas corpus dos autores do ato criminoso”.

Centro Santo Dias de Direitos Humanos

A reportagem da Fórum tentou contato, por várias vias, com o Centro Santo Dias de Direitos Humanos, mas não conseguiu localizar os responsáveis pelo órgão, que é vinculado à Arquidiocese de São Paulo.

Defensoria Pública da União

A Defensoria Pública da União (DPU) afirmou que divulgará nos próximos dias um boletim com informações relativas ao Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado entre o Carrefour, a Educafro e o Centro Santo Dias. A nota encaminhada à Fórum diz ainda que “Como instituição pública, não é papel da DPU entrar em disputa de protagonismo ou de discursos entre as entidades do movimento negro” e que “A Educafro figura apenas como terceira interessada no acordo em razão de ter sido a única no manejo de ação coletiva relacionada ao caso, mas não tem qualquer destinação de valor ou obrigação ou função específica de fiscalização no acordo. Todas as entidades têm legítimo interesse de obter conhecimento das ações executadas e isso será feito por meio dos canais oficiais”.

Defensoria Pública do Rio Grande do Sul

A Defensoria Pública do Rio Grande do Sul foi procurada pela Fórum e informou que entraria em contato com o defensor público que atuou no caso do TAC envolvendo o Carrefour, a Educafro e o Centro Santo Dias para que ele próprio esclarecesse os pontos levantados. Até o fechamento desta reportagem, no entanto, não houve um retorno por parte do defensor.

Ministério Público do Trabalho

O Ministério Público do Trabalho (MPT) afirmou que “esse TAC é um compromisso firmado entre o Carrefour, O Atacadão e várias instituições da área da Justiça: MPT, MPF, Defensoria Pública, etc. Cada uma delas tem sua atribuição específica na fiscalização do cumprimento de determinados pontos. Devido a isso, o MPT só se manifesta sobre os pontos que lhe cabem diretamente. Mas ressalto, no tocante às considerações prévias do e-mail (de contato, da redação da Fórum), que o TAC não contempla doação feita a qualquer ONG”.

O MPT informou ainda que não falará sobre os valores envolvidos, questões relacionadas à renúncia fiscal ou acerca das alegações de inocência do Carrefour, constantes no TAC, “pois O MPT não se manifesta sobre questões tributárias. E essa é uma pergunta que extrapola o escopo da atuação do órgão na fiscalização e garantia desse acordo específico”.

Ministério Público Federal

O Ministério Público Federal (MPF) informou à reportagem que está empenhado em marcar uma entrevista com o procurador responsável que atuou no TAC envolvendo o Carrefour, a Educafro e o Centro Santo Dias. A Fórum segue aguardando o retorno do órgão para proceder com a entrevista sobre o caso.

Ministério Público do Rio Grande do Sul

O Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul foi procurado pela Fórum, mas até a publicação da reportagem não havia respondido aos contatos.

A reportagem da Revista Fórum segue à disposição das partes envolvidas para que deem suas versões sobre o caso.

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