Representante da UFMG avalia que sistema de reserva de vagas trouxe impacto significativo, critica falta de dados oficiais e diz que é cedo para avaliar efeitos

Rodrigo Edinilson de Jesus,(foto: Juarez Rodrigues/EM/D.A Press – 17/5/18 )

A legislação que mudou o perfil das instituições federais de ensino completa 10 anos. Ao reservar metade das vagas a estudantes vindos de escolas públicas e, entre esses, negros, indígenas, deficientes e pessoas de baixa renda, a Lei de Cotas vai além da cor, origens, tipo de cabelo, condição financeira… Ela toca direto à assistência estudantil, nas questões envolvendo a permanência desses estudantes e no desejo e direito de representação desses grupos nos espaços de ensino, pesquisa e extensão. Nas universidades federais, o número de cotistas aumentou 10 vezes. Em Minas Gerais, a UFMG, uma das maiores do país, viu a presença de alunos negros e brancos equilibrar a balança da (des)igualdade. Os efeitos globais das cotas são desconhecidos, pois falta avaliação nacional. A lei tem lacunas e precisa de aprimoramentos, mas o debate não encontrou eco e a revisão prevista para este ano está ficando na gaveta. Na terceira e última reportagem da série sobre a Lei de Cotas, o  Estado de Minas entrevista o presidente da Comissão de Ação Afirmativa e Inclusão da UFMG, Rodrigo Edinilson de Jesus, para quem uma avaliação neste momento é arriscada do ponto de vista político e da coleta de dados. “Se a lei tem como objetivo direto e indireto combater desigualdades raciais, não pode ser uma revisão apenas do número de ingressantes ou de egressos”, diz. Combater vícios históricos e garantir direitos ainda representam grandes desafios: “O imaginário do Brasil ainda está vinculado à casa grande e à senzala”, afirma.

 

A revisão da Lei de Cotas não foi feita ainda. O que fica comprometido?

Lei tem força de lei, e ela diz que em 10 anos o texto seria revisado. Mas, em geral, toda lei tem decretos complementares de regulamentação para dizer como será operacionalizada. Há o decreto regulamentando a aplicação da lei, mas não há regulamentação da revisão. Minha avaliação política: no momento do debate público sobre a lei havia má vontade grande de alguns setores e algumas condicionalidades foram aprovadas para mitigar o impacto mais efetivo da lei. Ela será de 10 anos e não ad eternum. O movimento negro também encampou o discurso não como alguém que quisesse a lei por 10 anos, mas falar dessa condicionalidade ajudava no convencimento. Três elementos que hoje discutimos muito – políticas de permanência, revisão da lei e acompanhamento da autodeclaração – já estavam de alguma forma presentes no debate, mas não foram tematizados, porque eles gerariam mais tensão. No fim das contas, atores políticos interessados na implementação das cotas pensaram: vamos conseguir a política de acesso para depois avançar nas outras dimensões. Embora presente na lei, (a revisão) não foi seriamente levada em consideração. Tanto é que temos muitas iniciativas setoriais de avaliação, como no curso X, na universidade Y, mas uma pesquisa de acompanhamento de grande banco de dados ligando acesso e inserção no mercado de trabalho, isso não houve.

“Acho um problema quando a lei descreve que destinatários da política são pretos, pardos, indígenas, separados com vírgula. Fica parecendo que pretos e pardos são grupos autônomos”

Como fazer essa revisão?
Se a lei tem como objetivo direto e indireto combater desigualdades raciais, não pode ser uma revisão apenas do número de ingressantes ou de egressos. Tem que acompanhar a transição no mercado de trabalho para ver se o rendimento de indivíduos negros tem aumentado nesse ingresso. Não faz sentido esse acompanhamento em 10 anos, porque em uma década não se completa um ciclo. Em termos de desenho, avaliação, acompanhamento, o ciclo de monitoramento de cotas não se fechou. São cinco anos em média de graduação, um ou dois anos de interseção para entrada no mercado na sua área específica, mais cinco anos para início e meio de carreira. São pelo menos 15 anos para começar a fazer efeito. Não dá para pensar em apenas uma turma de ingressantes, a de 2013. O Brasil tem passado por momento de declínio no mercado de trabalho, isso impacta também. Tem variáveis intervenientes que precisam ser consideradas. Para fazer esse tipo de esforço, é necessária a coordenação feita pelo MEC (Ministério da Educação) com equipe e recursos. Senão, corre-se risco de fazer avaliação como em São Paulo, uma avaliação ideológica.
E o que precisa ser levado em conta? 
Há dois pontos: juridicamente falando, há ritos, quando se coloca na letra da lei que ela será submetida à revisão, e a expectativa do que será feito a partir de dados e tomada de decisão com base em evidência. Mas, olhando para nosso Legislativo, não tem muita expectativa de que todas as pessoas que estão lá vão tomar decisão a partir de evidência. Há muitos projetos de lei tramitando atualmente sobre as cotas, alguns indicando a continuidade da lei, outros propondo a retirada do recorte racial, mas tudo isso a partir de impressões. Aqueles que sinalizam a necessidade de continuidade chamam a atenção para ausência de dados e do ciclo completo da geração dos efeitos. Mas, mesmo esses não estão ancorados em dados, porque não existem. A única iniciativa do MEC de que tenho notícia de avaliação mais global da lei foi pesquisa financiada em 2017, que coordenei, na transição do governo Michel Temer (2016-2017). Tivemos incumbência, além de entrevistar egressos negros e indígenas, de fazer análises substanciais de dados quantitativos de ingresso de negros e aumento de política de cotas. São dados só de ingressantes, porque não há banco de dados de concluintes. Tem Enade (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes), mas ele é amostral, não tem dado universal. Não tem como identificar o código do aluno e ele no mercado de trabalho. O Inep teria como fazer, pegar amostras para fazer rendimento de ingresso no mercado de cotistas e não cotistas.

“A UFMG tinha 70% de alunos autodeclarados brancos, em 2003, e em 2009 (ano em que instituiu o bônus no vestibular), vai para 49% de estudantes brancos e 45% negros”

 

Na ausência de regulamentação da revisão, em ano eleitoral, há espaço para essa discussão? 
A reforma conservadora que vivemos se deve a políticas progressistas, como a de cotas. A política explicita existência de conflitos raciais no Brasil, explicita o abismo racial na sociedade brasileira, e um dos espaços de reprodução da desigualdade da universidade é questionada, deixa de ser exclusiva. Nesse momento que emerge discurso forte de que o PT dividiu a nação, criou brancos e negros e o discurso de descreditação da universidade pública, chamando-a de balbúrdia… A retirada de Dilma (Roussef), entrada de Temer e posterior eleição foram parte da desestabilização dessa política e desse projeto de nação. Não foi falta de planejamento, mas continuidade do enredo. Não há interesse na continuidade da política, porque para esse governo nem existe racismo no Brasil. É incoerente patrocinar a revisão da lei, por desacreditar nela, e mais estranho seria se houvesse revisão para continuidade. O discurso que esteve presente na época da criação da lei (e ainda existe), de que “cotista roubou minha vaga”, mostra a vaga como capitania hereditária e ideia do cotista como marginal, como ladrão. Outro exemplo é o programa Mais médicos: a oposição a esses médicos não se deve ao fato de serem estrangeiros, mas por serem negros cubanos. O imaginário do Brasil ainda está vinculado à casa grande e à senzala.
O que mudou na UFMG com as cotas?
Hoje, do ponto de vista discente, a universidade não é mais a mesma. Esses estudantes não impactam apenas o corpo, o cabelo, mas a dimensão epistemológica: se organizam, reivindicam representação, questionam a dimensão eurocêntrica dos currículos, a postura universalista da assistência estudantil. Credito aos coletivos de estudantes negros e ao programa Ações Afirmativas e Conexões dos Saberes a mudança por dentro. Até 2000, 2002, havia uma pressão muito de fora; com a chegada desses estudantes, começa a ter pressão por dentro. A UFMG avançou em todos os aspectos. A eleição de Jaime (Ramirez) e Sandra (Goulart), como reitor e vice, em 2004, teve impacto significativo na gestão e nas pessoas mobilizadas para estar na gestão, mas ainda há enclausuramento da gestão, ainda não tomou toda a instituição. É conduzido por alguns técnicos e setores, mas tem alguns ainda que não conseguem dizer o que são cotas. Operacionalizam a política, que segue a cor. Eu avalio que temos processo de implementação de algumas políticas em alguns setores, mas não a dimensão institucional em vários deles.
 
A reserva de vagas se estende a todo o câmpus?
A Lei 2.711 é uma reserva social e há sub-reservas – em torno de 25% de estudantes autodeclarados pretos, pardos e negros. Em 2017 se conseguiu avanço interessante, com aprovação das cotas na pós-graduação. Cotas para ingresso de servidores técnico-administrativos já são implementadas na totalidade, mas embora tenha reserva para docentes, não há garantia dessa reserva. Essa é uma mudança muito importante para conseguirmos diversificar corpo docente, gestão, produção da ciência e democratizar decisões da universidade. Não estou falando que vivemos num mundo sem desigualdade, mas houve avanço na redistribuição de renda. E isso gera ressentimentos.
 Estudantes na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG(foto: Edésio Ferreira/EM/D.A Press – 30/3/15)
Quais modificações deveriam ser feitas na Lei de Cotas?
A lei não garante o direito, o usufruto do direito, o que garante é a política. Acho um problema quando a lei descreve que destinatários da política são pretos, pardos, indígenas, separados com vírgula. Fica parecendo que pretos e pardos são grupos autônomos, que pardo é outro grupo racial. Em todo debate de ação afirmativa na década de 2000, estava nítido que a política era dirigida à população negra (de pele preta e de pele parda). Essa pode ser uma modificação na letra da lei.
E na política da lei?
Tem que ser pensada não como reserva de vaga, mas como ação afirmativa. Está vinculada à permanência, titulação, entrada no mercado, modificação dos currículos. Questionamento de hegemonia universalista que segue a cor (a legislação aborda o recorte racial e depois diz que não precisa olhar dimensão racial na política). Dados que temos dão conta de que estudantes cotistas evadem menos que não cotistas. Na UFMG é muito explícito em função da política estudantil, uma das mais consistentes da universidade. Não significa que não haja lacunas. Para esse estudante permanecer precisa ter suporte institucional, familiar, ou trabalhar muito mais que os outros. O custo simbólico da vaga é muito maior que o custo para alguém que sabe que entra, sai, muda de curso.
Como o senhor avalia a trajetória de cotistas?
A mudança foi muito significativa: saíram de 8 mil, em 2009, para 85 mil em 2016. A UFMG tinha 70% de alunos autodeclarados brancos, em 2003, e em 2009 (ano em que instituiu o bônus no vestibular), vai para 49% de estudantes brancos e 45% negros. Esse percentual se mantém mais ou menos estável. Em cursos mais prestigiosos, vemos como mudou o perfil do bônus para as cotas. Nos cursos em que a média de nota é muito alta, o bônus não era suficiente para fazer essa diferença, então, havia uma sobrerrepresentação em cursos com nota de corte um pouco menor. Quando se instauram as cotas, necessariamente se garante um percentual em cursos como direito, medicina, odontologia.
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