Nota do Povo Indígena Puri sobre o incêndio no Museu Nacional – UFRJ

05/09/2018

Gilvander Luis Moreira

Fonte:http://www.cptmg.org.br/portal/nota-do-povo-indigena-puri-sobre-o-incendio-no-museu-nacional-ufrj/

Foto: BBC News Brasil

Nós, indígenas remanescentes da etnia Puri, queremos manifestar publicamente nossa dor e indignação pelo incêndio do Museu Nacional, ocorrido na noite do último domingo, dia 02 de setembro de 2018;

Por toda a perda de incontáveis peças e documentos de inigualável valor histórico, arqueológico, antropológico e cultural.

Por toda a História e memória incineradas.

Por todas as narrativas que se perderam pra sempre.

Entre as áreas nas quais a instituição é importante referência, destacamos a Antropologia e a Linguística; pesquisas de valor inestimável foram e vinham sendo desenvolvidas nessas áreas, a partir do incomparável acervo que continha registros históricos, antropológicos e linguísticos datando desde o século XVI, acerca dos povos que ocupavam territórios que atualmente correspondem ao Brasil. Estudos realizados inclusive por estudantes indígenas, com resultados necessários e positivos na vida e na garantia de direitos dessas comunidades étnicas – entre eles a demarcação de terras.

A destruição do acervo da instituição é um duro golpe contra a educação, a cultura e a pesquisa científica neste país; a nós indígenas, reflete como uma continuidade da destruição empreendida contra nós e a tudo que se relaciona à nossa gente há 518 anos.

Entre as irreparáveis perdas ocorridas nessa tragédia estão o arquivo Curt Nimuendaju, contendo o original do mapa étnico-histórico-linguístico com a localização de todas as etnias do Brasil datado de 1945; registros únicos de história, cultura e cosmovisão de muitos povos indígenas; registros únicos da língua de nosso povo Puri e outros. Isso soa como o terceiro ato de uma ópera de destruição que começou com o genocídio dos falantes dessas línguas, e foi seguido pela proibição de que os poucos sobreviventes as falassem, as mantivessem vivas; agora assistimos as chamas consumirem os registros dessas línguas, que em alguns casos é a única coisa que restou de povos já extintos. Agora apagados de vez da História.

Na contramão da tentativa de aniquilação do nosso povo, nós Puris, que oficialmente estamos listados pela FUNAI como etnia extinta, lutamos para reestruturar nossa cultura, vítima do etnocídio perpetrado pelo Estado Brasileiro, e nessa luta a retomada da língua tem um papel basilar.

Para uma língua como a nossa, proibida, interrompida por um espaço de tempo, a pesquisa dos registros de nossa língua ancestral, é fundamental para que se empreenda a revitalização do idioma.

Uma das principais bases da pesquisa que nós Puris vimos realizando sobre a língua na última década vem do acervo de Curt Nimuendajú, etnólogo alemão que percorreu terras indígenas brasileiras por mais de quarenta anos, legando registros de valor incalculável; esse legado foi transformado em cinzas.

Enquanto alguns de nós, presentes no momento do incêndio, assistíamos impotentes à destruição do Museu Nacional e toda a História e memória que ele abrigou, uma Puri levava as mãos à cabeça num gesto de incredulidade, e pranteava pelas urnas funerárias indígenas que estavam sendo destruídas pelas chamas:

“Nos negligenciam e nos destroem em vida e ainda depois de mortos.”

Restos mortais de nossos ancestrais, retirados de seus locais de origem dos ritos funerários, profanados, por fim incinerados pelo desprezo do Estado Brasileiro.

Solidarizamo-nos com a indignação dos funcionários do museu que bradavam inconformados com a chegada tardia do 1º caminhão pipa dos bombeiros, somente após toda uma grande parte do prédio, antes intacta, já ter sido devastada pelas chamas.

Solidarizamo-nos com a indignação da comunidade científica frente ao descaso dos governantes, que independentemente de siglas e orientações ideológicas foram omissos, ao longo de vários anos, frente ao desmonte de um dos mais importantes espaços de conhecimento do País, que há 14 anos já vinha expondo sua precariedade, que desde 2014 não recebia o repasse de verba necessário à sua manutenção, que em 2015 chegou a fechar as portas e este ano recorreu a uma “vaquinha virtual” para arrecadar recursos ao seu pleno funcionamento.

Nos solidarizamos com vários cidadãos e cidadãs deste país, que também amargam a angústia da impotência diante dos desmandos de seus dirigentes e supostas elites, aos quais importam investimentos mais rentáveis às empreiteiras e aos donos do capital.

Solidarizamo-nos com todos os enlutados pelo nosso passado e nosso futuro.

Desejamos que aqueles e aquelas com quem nos solidarizamos sejam igualmente solidários à dor indígena diante daquelas chamas:
elas nos lembram as armas de fogo usadas no assalto à nossa terra e vida; elas nos lembram os incêndios de aldeias, que assolaram nossos povos;  elas nos lembram o destino de nossas florestas, que foram nosso lar e alimento durante séculos; elas nos lembram das nossas crianças e parentes queimados vivos ainda hoje; elas nos fazem concluir que a sanha destruidora que nos assola há cinco séculos permanece viva.

Rio de Janeiro, 04/09/2018.

Assina essa Nota:

Associação Regional da Comunidade Remanescente de Índios Puris Padre Brito

Grupo de Estudos Indígenas Povos Originários

Movimento de Ressurgência Puri

Movimento Resistência Puri

Movimento Txemim Puri

Obs.: Duas Notas necessárias também, abaixo.

http://www.portal.abant.org.br/2018/09/03/nota-da-associacao-brasileira-de-antropologiaperda-de-acervo-irrecuperavel-aba-em-luto-pelo-museu-nacional/

https://www.cedefes.org.br/nota-da-sociedade-de-arqueologia-brasileira-sobre-o-incendio-no-museu-nacional/

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