Na propaganda, o lítio extraído pela mineradora canadense Sigma no Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, é vendido como “verde”, “sustentável” com “zero químicos”, “zero água potável”, “zero rejeitos” e “100% de prosperidade” para a região.

Na realidade, indígenas e quilombolas ouvidos pelo Observatório da Mineração contam uma história diferente. Comprometimento do abastecimento de água, poluição sonora, poluição do ar, inflação causada pela atividade da mineradora, aumento da violência e ameaças a áreas de proteção.

“A Sigma vem causando impactos na questão hídrica, cultural, na paisagem, na fauna, na flora, estamos percebendo isso na nossa comunidade”, elenca Cleonice Pankararu, liderança que vive na aldeia Cinta Vermelha de Jundiba, às margens do rio Jequitinhonha, habitada pelos povos Pankararu e Pataxó.

Cleonice Pankararu. Foto: Arquivo Pessoal.

Anunciado com pompa pelo governo de Minas Gerais, o Ministério de Minas e Energia e executivos de mineradoras em evento em Nova York em maio, o “Vale do Lítio”, como tentam rebatizar o Jequitinhonha, virou um novo centro de atração de empresas multinacionais para extrair esse mineral que é usado massivamente em carros elétricos e em energias “renováveis”.

Empresas canadenses, lideradas pela Sigma, tomaram conta da região, que concentra 85% das reservas brasileiras de lítio. Os impactos socioambientais, porém, costumam ficar bem escondidos por trás de uma camada espessa de marketing.

O desequilíbrio ambiental notado por Cleonice já é amplo. Ela relata que infestações de morcegos estão acontecendo, levando ao temor da possível transmissão de doenças. Abelhas também estão desorientadas, relata, com enxames que indicam as consequências da “ação predatória” da empresa.

“As grutas, cavernas, o local onde eles (morcegos) se alimentavam, as frutas, árvores e flores, tudo isso sofre impacto da mineração porque a mineradora usa muita explosão. É muito movimento, barulho de caminhões, carros, funcionários, houve uma mudança terrível na região”, conta Cleonice Pankararu.

O abastecimento de água potável com carro pipa, que antes a comunidade contava, foi afetado porque a Sigma fechou acordo com o fornecedor que, recebendo muito mais da multinacional, agora não quer atender os indígenas e quilombolas, não renovando o contrato e deixando faltar água.

O fluxo intenso de pessoas de fora para Araçuaí já mudou a dinâmica da cidade e gera inflação que se reflete no preço dos aluguéis. Alunos indígenas e quilombolas que moram na área rural e estudavam na cidade não conseguem mais pagar aluguel e muitos estão desistindo de estudar, mesmo no Instituto Federal da cidade, um centro de excelência. O custo de vida, dos alimentos e do transporte acompanham. Algo que não aparece na propaganda. “Tudo subiu de preço e começou a piorar depois que a Sigma e suas terceirizadas chegaram aqui”, relata Pankararu.

Dança dos Praiá no terreiro Sagrado, Aldeia Cinta Vermelha de Jundiba. Foto: Arquivo Pessoal

Outro aspecto comumente negligenciado pela doutrina do desenvolvimento com a qual se justifica a expansão de extração de lítio, além dos impactos sociais e ambientais, é a questão espiritual.

Para os Pankararu, por exemplo, as serras, chapadas e árvores são protetoras da espiritualidade do povo. Os indígenas agora convivem com o medo da destruição de locais sagrados e da devastação ambiental de áreas onde coletam raízes para fazer remédio e frutos para artesanato. O impacto espiritual e psicológico da atividade mineradora é relevante.

“A empresa destrói o solo e o subsolo. Nós indígenas sentimos muito. Para a gente o patrimônio material e imaterial, o natural e o sobrenatural são indissociáveis e inseparáveis. Uma pedra tem valor, uma gruta tem valor, um riacho, uma nascente. Tudo isso é muito importante para nossa vida, nossa orientação, nossa cultura, organização social e espiritual”, afirma Cleonice Pankararu.

A líder teme que a extração de lítio avance para dentro do pequeno território de 60 hectares que luta pela demarcação e homologação pela Funai. Até hoje, somente a identificação da área foi feita, em 2012. Os indígenas reivindicam a ampliação da área para 600 hectares, o que seria o mínimo suficiente para que as famílias trabalhem melhor a terra, criem os animais e recupere áreas degradadas com práticas que envolvem a permacultura e a agroecologia.

Cabana do Terreiro do Sol – Mayão. Foto: Arquivo Pessoal

A pressão sobre comunidades como a de Cinta Vermelha de Jundiba se explica pelo crescimento exponencial do mercado de veículos elétricos, por exemplo, que dependem do lítio para as suas baterias.

Mais de 10 milhões de carros elétricos foram vendidos no mundo em 2022 e a expectativa é que esse número cresça 35% este ano, alcançado 14 milhões de unidades, segundo a Agência Internacional de Energia. Atualmente, a participação dos carros elétricos no mercado automotivo já é de 14% e pode chegar a 18% em 2023.

Foto de abertura da matéria: Divulgação Sigma Lithium

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Chapada do Lagoão. Foto: MAB.

Quilombolas tentam defender área de proteção

Os interesses da Sigma em uma área de proteção ambiental em Araçuaí, a Chapada do Lagoão, motivaram a reação de comunidades quilombolas, ativistas e políticos.

O conselho da APA, sob pressão, aprovou a pesquisa mineral de lítio na região. O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) denunciou que o processo violava direitos pela não realização de consulta prévia, livre, informada e de boa-fé das comunidades quilombolas Giral, Malhada Preta e Córrego do Narciso do Meio.

A consulta prévia é garantida pela Convenção 169 da OIT, ratificada em lei pelo Brasil, e vive sob ataque cerrado de lobistas e empresários, que não respeitam o direito das comunidades tradicionais, caso comum na mineração.

O Ministério Público de Minas Gerais, acionado pelo MAB e pela deputada estadual Beatriz Cerqueira (PT/MG), recomendou a anulação da aprovação, o que foi confirmado em maio após nova decisão do conselho da APA.

A Sigma afirma que o chamado complexo Grota do Cirilo, em Araçuaí e Itinga, vai produzir 531 mil toneladas de concentrado de lítio de alta pureza ao ano somente na fase 2 do projeto. Quando a capacidade total estiver em operação, a Sigma deve figurar entre as 5 maiores produtoras de lítio do mundo, espera a empresa.

A denúncia do MAB alega que essa atividade pode impactar diretamente o acesso à água dos moradores. “Enquanto as comunidades rurais do Vale do Jequitinhonha dispõem de uma caixa d’água de 16.000 litros para consumo doméstico por 8 meses (estiagem), ou seja, 2 mil litros por família/mês, a outorga da Agência Nacional das Águas – ANA para a Sigma na região de Itinga é de 3,8 milhões de litro/dia (100 milhões de litros mês), o que daria para abastecer 34.000 famílias”, afirma a nota do movimento.

Chapada do Lagoão. Foto: MAB

Para o quilombola Roberto (nome fictício), que preferiu não se identificar por medo de represálias, o lítio está sendo tratado como a nova salvação do Jequitinhonha, com impactos como a poeira que causa doenças respiratórias e o agravamento da falta de água na região. Apenas dentro da APA há mais de 130 nascentes e cerca de 300 famílias, incluindo comunidades quilombolas que começam a sentir os impactos das atividades da Sigma.

Roberto afirma que a APA é a caixa d’água de Araçuaí e que a preservação da natureza é essencial para o sustento das famílias, que dependem do extrativismo sustentável de frutas e outros itens.

 

“O Vale do Jequitinhonha não é pobre, é esquecido de ações governamentais para desenvolvimento do Vale”, diz Roberto, que reclama da chegada da Sigma e o ciclo de especulação imobiliária que assola a região, já vastamente sondada para a extração de lítio de várias empresas além da canadense. “Há lítio em outros lugares que não são áreas de proteção ambiental, queremos que deixem nossa Chapada em paz”, cobra.

Para o quilombola, uma das soluções é que o Estado se faça mais presente, apoiando a agricultura familiar que produz comida para escoar a produção e que crie programas de fomento e combate à seca. Roberto reforça os relatos de Cleonice Pankararu, de que a inflação se tornou um problema grave, a violência tem aumentado e que ainda existe o impacto na cultura e modo de viver das comunidades.

O lítio seria apenas uma nova face de eternas promessas de desenvolvimento que nunca se cumpriram, mas deixaram o Jequitinhonha na pobreza e devastado, caso do eucalipto, do granito e da pecuária.

“A gente não quer barrar empreendimento que seja construído para o povo. O que não aceitamos é que o povo seja explorado mais uma vez. Não é pagando CFEM (compensação financeira pela exploração mineral) que o Vale será desenvolvido. Não adianta pagar CFEM e as comunidades não terem acesso a água”, diz.

Divulgação Sigma Lithium

Sigma se aproxima do governo Lula e celebra ações na Bolsa

Eu procurei a Sigma Lithium por diversas vezes por telefone e por emails de contato disponibilizados no site, detalhando as questões levantadas na matéria e pedindo um posicionamento da empresa. Ninguém nunca atendeu ao único telefone disponibilizado e a empresa não respondeu aos reiterados emails enviados.

Embora não responda parte da imprensa, a Sigma tem atuado fortemente no Instagram para vender os alegados benefícios do projeto para o Vale do Jequitinhonha. Na figura da CEO, Ana Cabral-Gardner, a Sigma publica com frequência – e também patrocina posts na rede social – conteúdo sobre como está lidando com a sua operação “verde, sem rejeitos, sem químicos, zero carbono” e nas relações com a comunidade.

A Sigma também lançou o “Instituto Lítio Verde”, com o aval do IBRAM, e tem se aproximado do governo federal. Este mês Ana Cabral-Gardner foi recebida pelo ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Wellington Dias, em Brasília. O assunto da reunião foi “promover a inclusão socioeconômica com olhar mais sustentável”.

Wellington Dias com equipe da Sigma em Brasília / Divulgação

Dias celebrou o trabalho feito pela Sigma e afirmou que estão “trabalhando em uma parceria” para “tirar (pessoas) da pobreza” e “garantir o crescimento”. Cabral-Gardner afirmou que o combate à miséria é uma causa fundamental da Sigma e que esta teria sido “a razão de nós termos empreendido no Jequitinhonha há seis anos, de tentar elevar as pessoas conosco. Então, o lítio vai e as pessoas vão junto. É um círculo de prosperidade”, disse.

A CEO também se reuniu com a Secretária Nacional de Autonomia Econômica do Ministério das Mulheres, Rosane da Silva, com a proposta de “combater a violência doméstica e gerar desenvolvimento social” no Jequitinhonha por meio da “autonomia financeira da mulher”. Antes, em junho, Cabral-Gardner esteve novamente em Brasília e participou de cerimônia do Dia Mundial do Meio Ambiente no Palácio do Planalto, quando tirou foto com a ministra do MMA, Marina Silva.

Os negócios da Sigma têm avançado rápido. A empresa começou a extrair lítio de fato em abril deste ano. Esta semana, anunciou que as suas ações passam a estar listadas na B3, a Bolsa de Valores brasileira. E embarcou as primeiras 15 mil toneladas de lítio para diversos países.

O modelo de atuação do Instituto Lítio Verde anunciado pela Sigma chama a atenção: entre os milhões de reais anunciados pela empresa na “entidade sem fins lucrativos” que destinará recursos a “projetos socioambientais” na região está dinheiro da CFEM, o royalty da mineração. Ou seja: dinheiro que a empresa precisa pagar obrigatoriamente.

A Sigma também pretende captar recursos para o “instituto” em parceria com o BNDES. Recentemente, o Observatório da Mineração publicou um levantamento exclusivo sobre como o BNDES tem inundado mineradoras de dinheiro nos últimos 20 anos e como o governo Lula III pretende ampliar essas “parcerias.”

Divulgação Sigma Lithium

Na propaganda no Instagram, porém, a Sigma se orgulha de, até aqui, “não ter usado subsídios ou dinheiro público” e chama de “campanha de desinformação” o fato de que o Brasil exporta matéria-prima mineral para ser processada e beneficiada em outros países, sobretudo a China no caso do lítio, incluindo a própria Sigma.

Nos posts que publica, a Sigma alega ainda tratar tudo com “transparência” nas reuniões com as comunidades, evidenciando o “legado” que pretende deixar. Em um dos posts, colocou uma funcionária para medir o impacto das explosões que, de acordo com a Sigma, “não se escuta o barulho” e “o sismógrafo mal se move”.

Seguindo o padrão de toda mineradora, a Sigma se mantém perto do poder central, seja qual partido esteja no governo. Já no fim do governo de Jair Bolsonaro, a mineradora canadense celebrou o decreto publicado pelo ex-governo que, na prática, abriu o mercado de lítio brasileiro e possibilitou a avalanche de novos projetos no Jequitinhonha.

Aproveitando o gancho de post do ex-ministro do MME, Adolfo Sachsida, que comemorava o decreto, a Sigma publicou que a nova regra “transformou o futuro” do Jequitinhonha e “outras áreas do Nordeste e do semiárido brasileiro”.

Segundo a empresa, cidades como Itinga, Salinas, Virgem da Lapa e Araçuaí “tiveram seus destinos alterados permanentemente com a prosperidade trazida pela sua inserção nas cadeias globais de produção de veículos elétricos”.

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