Sob Bolsonaro, invasões de terras indígenas superam 2018

01/10/2019

GUSTAVO FALEIROS E FÁBIO NASCIMENTO

De janeiro a setembro de 2019, Conselho Indigenista contabilizou 160 ataques, 51 a mais que em todo o ano passado

Vista do alto, a Terra Indígena Karipuna ao lado de área de plantação, com focos de queimadas –

Vista do alto, a Terra Indígena Karipuna ao lado de área de plantação, com focos de queimadas – FOTO DE FÁBIO NASCIMENTO

Na terra indígena Karipuna, em Rondônia, os índios não podem mais usar a estrada que cruza seu território, com medo dos madeireiros. Localizado em Rondônia, a apenas 100 km da capital Porto Velho, o território é a última mancha verde na região do baixo Rio Jaci-Paraná. A mata dos Karipuna, onde crescem ipês, angelins e garapas, virou fonte de madeiras nobres para serrarias da cidade de Buritis e do distrito de União Bandeirantes. Alvo de críticas do presidente Jair Bolsonaro, as terras indígenas estão na mira de invasores. O mais recente balanço lançado pelo Conselho Indigenista Missionário, o Cimi, grupo que faz parte da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), mostra que os ataques, que já vinham aumentando nos últimos três anos, se intensificaram em 2019: em nove meses foram registrados 160 ataques, contra 109 em todo o ano de 2018.

De acordo com o relatório “Violência contra os Povos Indígenas do Brasil – Dados 2018”, divulgado na terça (24) em Brasília, entre 2017 e 2018 o número de ataques a essas áreas cresceu de 96 para 109. Mas devido à quantidade de registros já obtidos para este ano, o Cimi resolveu divulgar também dados preliminares. Os 160 casos de invasão registrados até agora afetaram 153 territórios em dezenove estados. Conflitos originados pela demarcação de terras indígenas não são uma novidade no Brasil. O problema agora, aponta o Conselho, é que os territórios, mesmo aqueles já demarcados e homologados, estão se tornando alvo prioritário de atividades ilegais. Ao contrário do que ocorria no passado, os invasores estão fincando bases dentro de terras indígenas, justamente as áreas onde há menos desmatamento. Levantamento de setembro do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) indica que só 6% das queimadas aconteceram dentro das terras indígenas.

Os números de invasões apontados pelo Cimi representam uma tendência nacional ainda que as piores situações estejam concentradas na Amazônia. Os ataques visam principalmente o roubo de terra e madeira ou a abertura de garimpos e pastagens ilegais.

Made with Flourish

Os assassinatos de indígenas também vêm crescendo e registraram aumento em 2018, de acordo com o Cimi. Foram 135 casos no ano passado, contra 110 em 2017. A maioria dos casos ocorreu em Roraima (62) e Mato Grosso do Sul (38). Entre 1985 e 2018 foram registrados 1 119 assassinatos de indígenas. Os dados estão sistematizados na plataforma Cartografia de Ataques Contra Indígenas – Caci, um banco de dados com fichas descritivas de cada caso de homicídio ocorrido nos últimos 33 anos. O mapa revela que a situação dos Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul é a mais dramática. Desde 1985 já ocorreram 450 casos dentro e nas proximidades do município de Dourados.

“Esses números mostram as consequências do discurso do presidente. Há um grande avanço das ocupações, as queimadas são um retrato disso”, afirmou o presidente do Cimi, dom Roque Paloschi, em entrevista na Cúria de Porto Velho (RO), onde é o arcebispo. Para ele, a diferença deste momento com os anos anteriores é a intensificação dos ataques.

Em discurso na 74ª Assembleia Geral da ONU, no último dia 24, Bolsonaro repetiu uma de suas promessas de campanha: não demarcar mais terras indígenas. “Hoje, 14% do território brasileiro está demarcado como terra indígena. […] Quero deixar claro: o Brasil não vai aumentar para 20% sua área já demarcada como terra indígena”, afirmou o presidente na ONU. Também criticou as organizações de proteção indígena, acusando-as de manipular líderes das etnias, e atacou diretamente o cacique Kayapó Raoni Metuktire.

No texto de abertura do relatório do Cimi, o bispo Paloschi aponta para a “ïnstitucionalização da violência” contra os povos indígenas. Segundo ele, as violações aos direitos dos índios são “promovidas e desencadeadas ao longo de décadas de modo sistemático por particulares e pelo Estado brasileiro”. Porém elas estariam ocorrendo de maneira muito mais acelerada neste momento na Amazônia.

Uma das questões levantadas pelo Cimi é que, mesmo que exista um grande número de terras indígenas declaradas no Brasil, a maioria delas – 63% – não está regularizada. Ou seja, das 1 290 terras indígenas, 821, por não terem limites demarcados, têm situação frágil. Destas últimas, também a maioria sequer teve os trâmites de legalização iniciados.

Dom Roque Paloschi, presidente do Cimi – Foto de Fábio Nascimento

 

Os registros do Cimi são obtidos prioritariamente por meio de relatos dos indígenas e dos missionários que trabalham próximos às etnias e suas terras. Invasões reportadas pela imprensa e dados do setor público também fazem parte da contagem. No caso de ataques e invasões, são consideradas várias formas de atentado contra o patrimônio, como o roubo de madeira, os loteamentos de terra, os garimpos e pastagens.

Uma das preocupações apresentadas por Paloschi é uma nova forma de “esbulho possessório” (termo jurídico que define a tomada ilegal de terras públicas). Ao contrário do que ocorria no passado, existe a certeza da impunidade e a aposta de uma futura legalização das posses, alertou o bispo. Em reportagem publicada em abril passado, a piauí mostrou detalhes da disputa de posseiros com os índios Uru-Eu-Wau-Wau, que vivem em área de mesmo nome a Noroeste de Rondônia.

Em um encontro em Porto Velho nesta segunda-feira (30), Bitaté Uru-Eu-Wau-Wau, presidente da associação Jupaú, que defende os interesses dos indígenas, explicou que, após as denúncias de queimadas dentro da terra indígena no mês de agosto, houve uma mobilização por parte de servidores da Funai e do ICMBio, com ajuda do Exército, para montar barreiras permanentes e impedir a entrada de novos grileiros no território. No entanto, em uma visita recente a um tradicional ponto de invasão, grande quantidade de madeira foi encontrada. A hipótese é que os invasores passaram a fazer apenas entradas estratégicas para cortar madeira, principalmente no fim de semana, para fugir da fiscalização. O fato reacendeu o alerta e mostrou que os invasores estão muito próximos do Alto Jamari, uma das principais aldeias da etnia. “Eles estão a apenas quatro quilômetros da minha aldeia”, contou Bitaté.

Já em relação aos Karipuna, o Cimi define a situação como uma ameaça iminente de genocídio. Reduzidos a menos de uma dezena de sobreviventes nos anos 1980, o grupo tem conseguido aumentar a população, que hoje já chega a quase sessenta pessoas. Uma operação para interromper as invasões na terra Karipuna foi realizada pela Polícia Federal e pelo Exército. Em duas fases, em junho e agosto deste ano, a SOS Karipuna teve prisões, serrarias fechadas e máquinas apreendidas dentro da reserva. Ainda assim a situação não parece ter melhorado.

“Nós sabemos que eles [os invasores] estão ocupando uma área próxima a um posto abandonado da Funai, mas ninguém vai lá, por medo”, conta Adriano Karipuna, uma das lideranças da etnia. Segundo ele, mesmo após operações da Polícia Federal e Exército para a retirada do invasores, o roubo de madeira e o desmatamento para abertura de novas áreas continua. “Não podemos usar a estrada mais, para sair só de barco.” Adriano relaciona o problema à política de Bolsonaro. Em sua opinião, as atividades ilegais nas terras indígenas aumentam porque os invasores se sentem “empoderados” com o apoio do presidente. “Ele, todo o tempo, a torto e a direito, fica falando que vai regularizar tudo”, diz o líder indígena.

Apoiado pelo Cimi, os Karipuna já levaram denúncias de invasão de seu território à ONU no ano passado. Também estiveram em uma viagem a países europeus para encontrar parlamentares e organizações não governamentais. Agora, nas três primeiras semanas de outubro, Adriano viajará ao Vaticano para participar como convidado do Sínodo da Amazônia, reunião de bispos convocada pelo Papa Francisco que discutirá o papel da igreja nos nove países da região.

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