Povo Xacriabá e Coronavírus: ‘Sem ajuda, metade vai passar fome’

21/04/2020

Jornal Estadão (Parte selecionada de reportagem)

Fonte:https://www.estadao.com.br/infograficos/brasil,os-indios-enfrentam-o-fantasma-do-coronavirus,1089377

 

Nas aldeias Xakriabá acontece assim: em se plantando, nada dá. Castigado pela falta de chuva em São João das Missões, município no norte de Minas, o povoado pré-colonial testemunhou nas últimas décadas gerações de índios desistirem da lavoura para tentar a vida nas cidades. Faz pouco mais de um mês que o cenário mudou. Por causa do coronavírus, postos de trabalho minguaram. Sem emprego ou perspectiva de renda, centenas de membros da tribo, enfim, retornaram às terras dos seu ancestrais.

Pelo registro de moradores, a população aumentou de 9,1 mil para mais de 10 mil pessoas no período – cenário que preocupa o coordenador de equipes de saúde indígena, Marciel Bispo, de 34 anos. Segundo relata, as famílias apareciam aos montes, às vezes até de madrugada, para aflição dos grupos sanitários empenhados no combate à covid-19. “Se a doença chegar, muita gente vai sofrer”, afirma.

Distribuídas por 34 aldeias, a maioria das casas é simples, com gente demais e cômodos de menos, descreve o enfermeiro Xakriabá. Algumas, de pau a pique, nem janela têm. “As moradias são escuras, quase sem ventilação. Você chega a ver quatro ou cinco crianças em um quarto pequeno, dormindo emboladas. As famílias correm risco maior nessa situação”, diz.

A escassez de alimentos e de itens básicos de higiene também começa a dar os primeiros sinais de alerta. “Quem saía para ganhar o pão de cada dia não está recebendo. Muitas pessoas já sentem dificuldade para comprar”, afirma Bispo. Segundo relata, foi solicitado à Funai distribuição mensal de cestas básicas – hoje o auxílio ocorre duas vezes por ano. “Recentemente, um diretor de escola me procurou perguntando se a gente não poderia fornecer creme dental, porque havia um pessoal precisando… Se não tiver ajuda, metade da população vai passar fome.”

Formado em enfermagem em 2009, Bispo foi o primeiro Xakriabá a pisar em uma universidade, após ter sido beneficiado por cota étnica, segundo conta. Hoje, atua na prevenção da aldeia contra a covid-19. Parte do seu trabalho é organizar a avaliação clínica e cadastro, com informações como cidade de origem e histórico de doenças, dos índios que voltaram para a tribo. No território, se alguém apresentar sintoma da doença, a ordem é ficar 14 dias de quarentena. “A tribo inteira está com medo. É uma questão de segurança: quem não seguir as regras vai ter de sair da aldeia.”

“Por tempo indeterminado fica expressamente proibida a entrada de pessoas não indígenas”, diz uma faixa pendurada na entrada do território, habituado a receber vizinhos, turistas e pesquisadores. Neste ano, não houve a festa do Dia do Índio, com suas tradicionais disputas de arco e flecha e lutas na lama. Por lá, também não sabem dizer quando voltam os torneios de futebol, que costumam reunir até times de brancos. Mesmo caminhões, que abastecem os comércios nas aldeias, agora são barrados.

Um episódio no início do mês causou revolta entre os Xakriabá. Tentando fechar o cerco contra a doença, os índios denunciaram uma operação policial em que os agentes, em busca de veículos roubados, entraram no território com armas à vista, mas nada de álcool em gel ou equipamento de proteção. “Causou terror nas aldeias. Não só pela ação que realizaram sem nenhum comunicado às lideranças da aldeia. Mas também pelo coronavírus, esse perigo que pode vir com os policiais que são de diversas cidades da região”, diz documento assinado por líderes das aldeias.

Embora o povoado tenha dez postos de saúde, o hospital de referência fica a mais de três horas de viagem, em Montes Claros, cidade a 256 quilômetros de distância. Na avaliação de Bispo, a malha de atendimento está aquém do necessário para lidar com pandemias. “Se sair indígena doente daqui, não há garantia de que vai conseguir vaga em CTI”, afirma. “Não existe estrutura para lidar com casos graves.”

Por enquanto, a única suspeita de covid-19 aconteceu com um jovem de 21 anos, morador de Goiânia, que teria vindo de uma escola com registro de uma morte de aluno e de infecção de um professor. De volta à tribo, ele tinha febre alta e tosse. Passou duas semanas em casa, sendo obrigado a usar máscara e recebendo visita de equipes de saúde. A quarentena já acabou mas, até hoje, ninguém sabe confirmar se ele estava ou não com coronavírus. O teste solicitado ao governo, segundo Bispo, nunca chegou à aldeia.

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