Menos de 7% dos territórios quilombolas reconhecidos têm títulos de propriedade

16/08/2019

Jornal GGN

Fonte:https://jornalggn.com.br/direitos/menos-de-7-dos-territorios-quilombolas-reconhecidos-tem-titulos-de-propriedade/

Apesar de Constituição garantir, apenas 6,7% das comunidades remanescentes de quilombos receberam títulos das terras. Disputas econômicas estão entre as causas

Dinâmica política e econômica da distribuição de terras no Brasil prioriza a expansão das grandes propriedades em detrimento das comunidades tradicionais. Na imagem, quilombo Sacopã, no Rio de Janeiro – Foto: Tânia Rêgo / Agência Brasil

do Jornal da USP 

Menos de 7% dos territórios quilombolas reconhecidos têm títulos de propriedade

por Matheus Souza 

No Brasil, de um total de 2.715 territórios quilombolas, somente 182 (6,7%) são titulados. Os números foram revelados numa pesquisa desenvolvida na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP, em Piracicaba, e foram obtidos na Fundação Cultural Palmares (FCP) e no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), ambos do governo federal. De acordo com Gabriel Colombo, autor do estudo, um dos motivos é a dinâmica política e econômica da distribuição de terras no Brasil, que prioriza a expansão das grandes propriedades em detrimento de comunidades tradicionais, quilombos e territórios indígenas.

O pesquisador lembra que a Constituição de 1988 trouxe uma grande conquista para as comunidades remanescentes de quilombos e o movimento negro da época: o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que garante o direito à propriedade dos territórios historicamente ocupados por elas. Contudo, mais de 30 anos depois, esse direito só se tornou realidade em uma pequena parcela dos territórios quilombolas reconhecidos pela FCP.

Os quilombos e o sistema capitalista

Para compreender os conflitos em torno dos territórios quilombolas, Gabriel Colombo fez uma análise a partir da teoria marxista, observando a trajetória histórica dos quilombos em relação à dinâmica econômica predominante, desde a escravidão até os dias atuais.

O pesquisador compreende essa história em três períodos, começando com o enfrentamento do regime escravista. “Os escravos eram ao mesmo tempo força de trabalho e capital dos senhores de escravos. Os quilombos se opunham a isso de forma a retirar essa força de trabalho”, explica o pesquisador, que também é diretor de Ciência, Tecnologia e Inovação da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG).

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O segundo período é chamado de “isolamento camponês” e acontece a partir de meados dos anos 1850. Nas regiões em que ocorria a crise das grandes propriedades diante da decadência do sistema escravocrata, os quilombos encontravam mais liberdade para se desenvolver. “Muito isolados, por vezes, pelo racismo e a impossibilidade de inserção na dinâmica socioeconômica do país, eles se fecham numa produção camponesa de subsistência, criando formas de solidariedade e cooperação entre si.”

Constituição garante o direito à propriedade dos territórios historicamente ocupados por comunidades quilombolas. Na imagem, quilombo na região de Ubatuba, litoral norte de São Paulo – Foto: Marcos Santos / USP Imagens

Na primeira metade do século 19, principalmente nos anos 1930, começa a ocorrer a integração ao sistema capitalista. É quando aumenta o interesse e especulação em torno dessas terras por parte do Estado, por meio da política ambiental ou da regulamentação fundiária, e também dos interesses econômicos de fazendeiros e comerciantes.

Esse contexto estimula as dinâmicas que Gabriel chama de “formas combinadas de existência quilombola”: expropriação parcial, semiproletarização e a subsunção ao capital. A primeira ocorre quando os quilombos perdem acesso a parte do território ocupado historicamente, o que pode ocorrer sob diferentes justificativas.

Já a semiproletarização ocorre quando os quilombolas não conseguem produzir o suficiente da maneira tradicional, seja por limitação de acesso às terras ou por novas necessidades impostas pelo mercado. Assim, surge a necessidade de vender sua força de trabalho em fazendas ou cidades próximas, geralmente em trabalhos precarizados.

Por fim, há a subsunção ao capital. Aqui, a produção do quilombo passa a ser organizada não mais para a própria comunidade, mas para um produto, ou produtos, que possam gerar renda. “Aí entra o caso do turismo rural ou a especialização em algumas atividades, como a produção de banana no Vale do Ribeira, por exemplo”.

Entraves

De acordo com o pesquisador, dentre as dificuldades para que as comunidades remanescentes de quilombolas recebam o título de suas terras estão a burocracia e lentidão dos processos jurídico-administrativos, que também demonstram falta de interesse político em avançar a questão.

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O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias só foi regulamentado em 2003, 15 anos depois da Constituição, por intermédio do decreto 4887, que reconhece a propriedade coletiva das terras quilombolas, algo inédito no Brasil. “Isso representa um avanço muito importante, mas é insuficiente sem modificações mais profundas no âmbito da questão agrária no País”, diz Gabriel Colombo.

Quilombolas enfrentam desde tentativa de expropriação até a dependência financeira ante grandes empresas que são também empregadoras. Na imagem, comunidade quilombola na Reserva Biológica do Trombetas, Pará – Foto: Carolina Teixeira de Melo Franco via Wikimedia Commons / CC BY-SA 3.0

Há ainda a disputa de interesses econômicos envolvendo fazendeiros ou grandes empresas, como é o caso dos territórios quilombolas de Oriximiná, no Pará. A área é rica em minérios como a bauxita, matéria-prima para a fabricação de alumínio, e por isso as comunidades que vivem ali enfrentam diferentes tipos de conflito com a empresa Mineração Rio do Norte (MRN), que vão desde a tentativa de expropriação até a dependência financeira, uma vez que a empresa também é a principal fomentadora da atividade econômica na região.

Para conferir na íntegra a dissertação, acesse a Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP.

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