Segundo funcionários, equipes precisam informar ‘possíveis pontos polêmicos’ e ações de artistas nas redes; banco diz não haver restrição a temas

 

A CAIXA ECONOMICA FEDERRAL  criou um sistema de censura prévia a projetos culturais realizados em seus espaços em todo o país. Novas regras implementadas neste ano exigem que detalhes do
posicionamento político dos artistas, o comportamento deles nas redes
sociais e outros pontos polêmicos sobre as obras constem de relatórios
internos avaliados pela estatal antes que seja dado o aval para que peças de
teatro, ciclos de debates e exposições já aprovados em seus editais entrem
em cartaz.
Funcionários da Caixa Cultural de diferentes estados relataram à Folha que
essas novas etapas no processo de seleção de projetos patrocinados pelo
banco permitem uma perseguição aberta a determinadas obras e autores. Os
relatórios já eram uma prática de anos anteriores, mas agora ostentam os
tópicos “possíveis pontos de polêmica de imagem para a Caixa” e histórico do
artista e do produtor “nas redes sociais e na internet”. Procurada, a Caixa diz
não haver restrições a temas.
O documento a que a Folha teve acesso mostra que no campo sobre
polêmicas devem ser levantados o que está descrito da seguinte forma:
“possíveis riscos de atuação contra as regras dos espaços culturais,
manifestações contra a Caixa e contra governo e quaisquer outros pontos
que podem impactar”.
Na ficha a ser preenchida há ainda campos chamados “histórico do artista
nas redes sociais e na internet e participação em outros projetos” e “histórico
do produtor nas redes sociais e na internet”. Os tópicos não existiam em
anos anteriores, ainda segundo funcionários da empresa.
Os relatórios são analisados pela superintendência da empresa em Brasília e
pela Secretaria de Comunicação (Secom) do Governo Federal, ainda segundo
os funcionários. Eles devem conter sinopses sobre os projetos culturais
propostos pelos artistas, além de históricos dos proponentes, custos do
projeto e justificativas para a seleção.
Em conversas com os coordenadores das unidades da Caixa nos diversos
estados, alguns funcionários entenderam que temas que desagradam
Bolsonaro, como questões de gênero, sexualidade e sobre o período do
regime militar, deveriam ser informadas.

Após ser elaborado, o relatório seguiria então para a superintendência da
Caixa em Brasília, que poderia barrar ou aprovar o projeto, tendo como base
este conteúdo, além de documentação e pesquisas de históricos dos artistas.
A Secom e o departamento jurídico também recebem relatórios. Existe
determinação para que nenhum projeto seja contratado sem tais avais.
Os funcionário ouvidos pela reportagem relatam ainda que, a partir deste
ano, aqueles que são responsáveis por analisar os projetos recebidos por
meio dos editais devem fazer um pente-fino do que os proponentes postaram
em suas redes sociais. Eles entendem que deverão ser relatados, por
exemplo, posicionamentos políticos e partidários e críticas ao governo.
Também há, de forma mais explicita, restrições da superintendência da
Caixa a imagens ou cenas de nudez (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/08/edital-do-bbque-pergunta-se-ha-cenas-nudez-nao-e-censura-mas-um-tiro-no-pe.shtml). O que esses funcionários
afirmam é que as mudanças criaram um ambiente de tensão em diferentes
graus entre as equipes nos estados. Em algumas delas, dizem eles, foi
dito explicitamente que pautas LGBT e sobre a ditadura militar devem ser
evitadas.
A autocensura se tornou o risco mais iminente neste processo, ainda sob a
avaliação dos funcionários. Eles temem retaliações e demissões e estão
incomodados porque entendem que estão participando de um sistema de
censura.
Esse é o contexto em que se inserem a suspensão
(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/10/estatais-cancelam-programas-culturais-e-despertam-novas-suspeitas-decensura.shtml)de ao menos três espetáculos teatrais —”Abrazo”, “Gritos” e
“Lembro Todo Dia de Você”, e também uma série de palestras e uma mostra
de cinema.
Em comum, os eventos cancelados trazem questões e imagens sobre
sexualidade ou sobre democracias e sistemas autoritários.
O infantojuvenil “Abrazo”, por exemplo, tem personagens que vivem em um
regime em que não podem falar. A Caixa alegou que o cancelamento ocorreu por quebra contratual por parte dos artistas, que teriam prejudicado a
imagem da estatal durante um bate-papo após a estreia em setembro.
Os artistas dizem que não ficou claro o que foi dito e que teria incomodado
gestores da empresa. Questionada pela Folha, a assessoria de imprensa da
Caixa não informou qual foi o conteúdo que incomodou a empresa.
Sobre os cancelamentos da série de palestras Aventura do Pensamento,
foram apontadas mudanças em títulos das palestras como justificativa. Sobre
“Lembro Todo Dia de Você”(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/10/caixa-cultural-cancela-pecasobre-gay-soropositivo.shtml), a Caixa diz que o espaço que seria dedicado às
apresentações da peça em outubro devem passar por reforma. A assessoria
de imprensa do banco afirma que a peça “Gritos”, que tem como um dos
personagens uma travesti, não estava prevista em sua programação.
Os criadores da peça dizem que “Gritos” fazia parte da mostra de repertório
selecionada para a ocupação de um teatro em Brasília, e que a Caixa fez
questionamentos apenas sobre essa peça. Não houve o mesmo cuidado com
“Aux Pieds de la Lettre”, que fazia parte do mesmo programa.
Inicialmente, segundo José Henrique de Paula, diretor da peça “Lembro Todo
Dia de Você”, não haviam sido oferecidas novas datas para que o projeto
pudesse ser apresentado, embora os proponentes tenham chegado a última
etapa de entrega de documentações. Após publicação pela Folha de matéria
sobre a série de cancelamentos, o diretor recebeu um telefonema e foi
informado que a Caixa tinha interesse em retomar a agenda.
Artistas que participaram de processos de seleção de editais da empresa e
funcionários da Caixa também dizem que neste ano, por determinação da
Secretaria de Comunicação, estão sendo exigidos detalhamentos mais
volumosos sobre os projetos aprovados. Os questionamentos sobre os
conteúdos, incluindo cenas, textos e descrições de imagens, passaram a ser
mais frequentes.
Questionada sobre o sistema de seleção de projetos, a assessoria de imprensa
da Caixa respondeu que “o processo do chamado Programa de Ocupação dos Espaços da Caixa Cultural envolveu etapas de avaliação por equipe técnica do
banco e por consultores externos com reconhecimento no meio cultural”.
Segundo a nota, “foram considerados aspectos técnicos quanto à qualidade
dos projetos e contrapartidas oferecidas ao patrocínio, sem restrição a
temas”.
A empresa diz ainda que “um dos critérios de seleção previstos no edital
dizia respeito à valorização da diversidade de expressões culturais e de
propostas que contemplem transversalidade de linguagens, mídias e
suportes”.
Esclarece também que os projetos que integram o Programa de Ocupação do
Caixa Cultural foram divulgados em 25 de julho, “não havendo no momento
novas seleções”.
“A Caixa informa ainda que na etapa de pré-contratação, há emissão de
posicionamentos sob as perspectivas de marketing, negócios e demais
cláusulas contratuais, com participação de representante das áreas, com o
devido registro em ata assinada pelos integrantes”, diz o texto.

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