Artigo: Um Engenho que sumiu… Sobre uma ‘Memória da Destruição’

16/12/2021

Por Alenice Baeta [1] e Hugo Sales [2]

Sítio Arqueológico ‘Engenho do Fidalgo’, composto por peças de madeira de lei encaixadas, conjunto de canais de água e zonas de plantio, exemplar magnífico de Paisagem Cultural (Bem de interesse Material e Imaterial). Município: Lagoa Santa. APA CARSTE DE LAGOA SANTA, MG.
Foto: Alenice Baeta, 2009 (antes de seu ‘desaparecimento’).

 

O antigo engenho conhecido como, ‘Engenho do Fidalgo’ situava-se na antiga fazenda homônima, município de Lagoa Santa, na APA CARSTE DE LAGOA SANTA,MG, localidade de referência das primeiras instalações ou pousos dos primeiros exploradores bandeirantes que por ali se adentraram a procura de ouro e pedras preciosas, além do aprisionamento de indígenas e apropriação de novas terras.

A Fazenda Fidalgo, que interligava a região de Sabaraçu aos desconhecidos sertões, faz parte de um antigo roteiro na região central de Minas Gerais e o seu antigo engenho, aqui tratado, configurava importante e raríssimo modelo etnoarqueológico, pois tratava-se de uma antiga estrutura típica de produção colonial ou ‘rancho’ mineiro na bacia rio  Uaimií ou Guaicuy (hoje, Rio das Velhas) na língua Tupi-Guarani. Além do interesse arqueológico, histórico e arquitetônico-vernacular, este bem cultural ainda tinha grande interesse no âmbito da sua natureza imaterial ou intangível, tendo merecido ter sido inventariado e associado à categoria ‘Cultura Alimentar Colonial’, bem como, aos componentes ‘Saberes’, ‘Lugares’ e ‘Patrimônio Mineiro’.

O ‘Engenho do Fidalgo’ situava-se em encosta bem suave, onde ao seu redor havia roças de milho e cana de açúcar, ladeadas ainda por uma série de canais de água. Defronte a esta estrutura há trecho de caminho real onde houve importante embate entre o superintendente das minas (o fidalgo D. Rodrigo de Castelo Branco) e comparsas da expedição de Borba Gato, originalmente integrante da Bandeira de Fernão Dias. O lugar onde se inseria o antigo engenho era fortemente relacionado a esta memorável emboscada ao fidalgo, por isto, essa nominação à gleba. Além dessa tocaia, o local é ainda associado a uma série de conflitos e violências relacionados à expansão das fronteiras coloniais e disputas de poder, que ocorreram sucessivamente no vale do rio das Velhas, incluindo o povoado Sumidouro, onde ocorreram inúmeros assassinatos, devido conspirações e traições entre os comparsas, além de inúmeras perseguições a indígenas.

Este engenho estava praticamente completo até o ano de 2009, mas foi totalmente destruído, e de uma vez (possivelmente em um único final de semana) quando as suas peças componentes foram desmontadas e levadas do local original, obviamente, sem ciência dos órgãos patrimoniais. Imagina-se que as peças componentes desse engenho possam ter sido equivocadamente comercializadas. O ‘desaparecimento’ deste bem cultural, tão raro, configura mais um absurdo no âmbito do patrimônio cultural, paisagístico e histórico de toda a APA Carste  de Lagoa Santa.

Que práticas como essa, relacionadas ao apagamento de memórias e mutilação de territórios culturais e tradicionais, associadas ao desmonte e ou comercialização ilícita de bens patrimoniais e arquitetônicos, sejam fortemente combatidas em nosso país.

A educação patrimonial popular, o inventário, a documentação e o incentivo ao turismo cultural de base comunitária deveriam ser incentivados na APA Carste de Lagoa Santa urgentemente, combatendo a ‘minerodependência’ e empreendimentos nocivos (como o de uma fábrica de cerveja que pretendia se instalar dentro da APA Carste de Lagoa Santa, por exemplo), que vêm ameaçando continuamente esta belíssima região cárstica, seus ecossistemas, bem como o seu patrimônio hídrico, espeleológico, arqueológico, paleontológico e sociocultural.

Além da paisagem abruptamente desfigurada, ficam algumas falas de antigos moradores do Guaicuy, sentidos e memórias de um antigo engenho que estranhamente ‘sumiu do lugar’…As lembranças persistem…Mas, ainda ‘Procura-se’.

Local onde havia o antigo ‘Engenho do Fidalgo’. Município: Lagoa Santa, MG. APA Carste de Lagoa Santa, MG. Fotografia em 2015 do mesmo lugar. Foto: Alenice Baeta.

 

[1] Historiadora e Arqueóloga. Doutora em Arqueologia pelo MAE/USP; Pós-Doutorado Antropologia e Arqueologia-FAFICH/UFMG; Mestre em Educação-FAE/UFMG; Membro do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios- ICOMOS-Brasil e do Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva-CEDEFES.

[2] Estudante de Arqueologia no Departamento de Antropologia e Arqueologia-FAFICH/UFMG; Membro do Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva-CEDEFES.

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