A mensagem na imagem acima é de Célia Xakriabá, a primeira deputada federal indígena eleita por Minas Gerais com mais de 100 mil votos: “antes do Brasil da coroa, existe o Brasil do cocar”. Se ainda há mais motivos para lutar do que celebrar, a data de 19 de abril deste ano traz algumas conquistas importantes. O Dia do Índio foi oficialmente substituído pelo Dia dos Povos Indígenas, de acordo com a Lei 14.402, promulgada em 8 de julho de 2022, tendo em vista que a palavra “índio” é pejorativa e genérica, não considerando as especificidades que existem entre os povos indígenas.

Nas eleições de 2022, nove pessoas autodeclaradas indígenas foram eleitas para cargos legislativos, o que representa um aumento de 900% em relação a 2018, quando apenas Joênia Wapichana havia sido eleita. Pela primeira vez, um governo eleito institui o Ministério dos Povos Indígenas, sob gestão de uma liderança indígena feminina, Sônia Guajajara. No dia 6 de abril, foi retomado o Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), órgão colegiado de caráter consultivo, integrante da estrutura do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, conforme o Decreto nº 11.481, de 2023.

Direito à biodiversidade

Professor Gustavo Soldati atua na interface entre etnobotânica, agroecologia e botânica aplicada (Foto: Carolina de Paula)

Reivindicação histórica dos povos indígenas, e também das comunidades tradicionais e agricultores familiares, o Projeto Político Pedagógico dos Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais do Brasil está sendo elaborado. O objetivo é fomentar um processo de formação, denúncia e construção de uma peça legal de caráter popular. Um dos convidados para mediar a construção do projeto é o vice-diretor do Jardim Botânico e professor do Departamento de Botânica do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da UFJF, Gustavo Soldati, em função de seu histórico na luta pelos direitos dos povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares.

O pesquisador também tem amplo conhecimento da Lei 13.123, conhecida como o Marco da Biodiversidade, que trata do acesso ao patrimônio genético do país e dos conhecimentos tradicionais associados. “Todo o processo se deu de maneira participativa, respeitando os valores desses grupos e buscando ampliar as suas lutas”, explica Soldati. Embora a Lei também verse sobre a repartição de benefícios, ela foi concebida em 2015 sem consultar esses grupos originários, que são justamente quem cuida e maneja a biodiversidade.

Já foi dado início ao processo de construção do Projeto Político Pedagógico com ampla consulta aos povos tradicionais, com uma oficina realizada em Brasília, em fevereiro deste ano, que contou com a participação de mais de 40 lideranças de todo o país. Está prevista a realização de cinco oficinas de formação regionais, uma em cada região do Brasil, e depois uma nacional, ainda em 2023.

“Tem a história que nos deram espelhos, né? Devem ter dado pra não ter que se enxergarem” (Cristiane Pankaruru)

“Fiz uma opção política de disponibilizar o meu conhecimento acadêmico para as lutas de todos os povos tradicionais. Creio que há um enlace ético e político na minha vida acadêmica que me faz aproximar das disputas que os povos indígenas travam atualmente. Em algumas situações, esses povos me reconhecem como parceiros e me convidam para contribuir”, afirma sobre as suas diferentes atividades relacionadas aos povos originários.

Cristiane Julião explica que Pankararu para os mais velhos significa “serra de águas”, mas o contexto original foi perdido por conta do processo de catequização e exploração (Foto: Arquivo pessoal)

Da etnia Pankararu, Cristiane Julião integra o grupo que tem elaborado o projeto político pedagógico, cuja discussão tem sido feita com bastante cuidado. “Faz parte de um longo processo de luta, aprendizados, diálogos e observações de atores e cenários onde atuamos”, comenta a indígena do povo que ocupa o sertão pernambucano.

Em sua concepção, o maior desafio continua sendo a regularização dos territórios. “A permissividade, a libertinagem que o sistema trata os territórios e seus habitantes humanos e não humanos sequela ainda em muitos sofrimentos porque mexe como toda dinâmica cosmológica, alimentar, cultural e tradicional; mexe como todo nosso corpo, desde a escravização física à psicológica.”

“Ainda estamos num processo de ‘educação etnosocial’, procurando agir com maturidade e diplomacia àqueles que nos chamam de ‘sujos’. Tem a história que nos deram espelhos, né? Devem ter dado pra não ter que se enxergarem.”

O valor da Educação 

Mestrando em Educação Matemática na UFJF, o indígena Francimario da Silva da etnia Macuxi mora no município de Normandia, em Roraima. Com 22 anos de trajetória profissional na área da Educação, Francimário já atuou em escolas indígenas e não indígenas. Ele conta que sempre gostou de estudar, acumulando formação em magistério para os anos iniciais, graduações nas áreas de Ciências da Natureza e Matemática e especializações em Metodologia do Ensino da Matemática e em Matemática.

“É muito gratificante essas experiências adquiridas ao longo da vida, mas percebi que a profissão de professor de Matemática vai além das quatro paredes. O curso de mestrado em Educação Matemática era um sonho. E esse sonho está se concretizando aqui na Universidade Federal de Juiz de Fora.”

Francimario da Silva durante visita à comunidade indígena Karassabai na fronteira entre Brasil e Guiana, única que tem a língua inglesa como nativa, além do português, espanhol e macuxi (Foto: Arquivo pessoal)

Pelas experiências em sala de aula, Francimario percebeu que faltava algo e queria contribuir como docente para sua cidade e seu povo. “Não é um simples papel ou certificado que almejo. A minha vinda aqui é para adquirir novos conhecimentos. Saio daqui com uma perspectiva de dever cumprido para disseminar para o estado de Roraima o verdadeiro valor da Educação Matemática, em especial para a educação escolar indígena”, assegura. A sua proposta de pesquisa busca justamente mostrar a cultura do seu povo e relacionar com o ensino da Matemática.

“Ser indígena no país hoje representa a formação do povo brasileiro, pois tudo começou com os povos indígenas”, reflete. Quanto às ações políticas do governo em todas as instâncias, a sua expectativa é que possam ser implantadas políticas públicas voltadas realmente para a população indígena, que se comprometam a combater o desmatamento e o garimpo ilegal.

Uma de suas preocupações principais é com a saúde pública indígena: “Por que não equipar as universidades que já existem para que a formação de futuros médicos do nosso país seja para todos? Já temos indígena médica, ou cursando faculdades de Saúde, mas é preciso investimento público para ampliar esse acesso.”

O movimento do Povo Puri no Sudeste

De acordo com o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado em 2010, atualmente há no Brasil cerca de 817.963 indígenas, de 305 etnias diferentes e 274 línguas indígenas. Apesar do senso comum acreditar que o Sul e o Sudeste tem poucos povos indígenas, por conta da maior concentração nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste do país, mais de 60 mil pessoas se autodeclararam indígenas nessas regiões.

Uma das etnias que sofreu com o processo de genocídio e etnocídio, por conta do avanço da colonização, é a Puri. No último censo,  675 pessoas que vivem em São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e, principalmente, Minas Gerais, se autodeclararam da etnia Puri. Hoje, há vários movimentos que buscam reconhecimento, visibilidade e garantia de direitos.

“Eu vibro para que nós estejamos mais presentes como sempre estivemos” (Aline Pachamama)

Historiadora, a indígena Aline Rochedo Pachamama (chamada Churiah Puri em sua língua original), explica que o povo Puri não é homogêneo. Ela integra o território da Serra da Mantiqueira, conhecida na língua indígena como Inhã Uchô, que significa Serra Mãe das Águas. Doutora em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Aline Pachamama explica que seu povo precisou ressignificar costumes para não ser totalmente escravizado e, a partir do século XVIII, há poucos agrupamentos numerosos, sendo encontrados apenas pequenos núcleos familiares. Há também registros em cidades de São Paulo, como Campos do Jordão e São José dos Campos, na Zona da Mata de Minas Gerais e em parte do Espírito Santo.

Com urucum no rosto e o maracá na mão (instrumento indígena tradicionalmente utilizado por pajés em rituais), Aline Pachamama entoa cântico à Mãe Terra em cachoeira da Mantiqueira (Foto: Arquivo pessoal)

Sobre a expansão territorial na região na época do Brasil Colônia que obrigou o deslocamento dos povos indígenas, a historiadora informa que os brancos não se apropriaram apenas dos territórios mas também das estradas do Ouro, que ficaram conhecidas como a Estrada Real. “Os deslocamentos entre as comunidades indígenas já existiam, e a Família Real também se apropriou dessa organização.”

Reconhecimento e identidade

Um trabalho que tem sido feito no momento é com as gerações mais novas para que se possa entender a importância da representatividade e identidade indígenas. “Não basta ser uma busca individual, tem que ter a escuta da família, mas é muito difícil, sobretudo para os mais jovens da nossa região, onde o nosso povo foi violentamente e simbolicamente silenciado. A sociedade não indígena é cruel demais e preconceituosa”, reforçando que fala sobre a sua vivência e seu lugar territorial.

A falta de incentivo governamental para se criar um centro de memória Puri tem obrigado os próprios indígenas a buscarem meios para tentar reparar essa lacuna e negacionismo histórico. Uma iniciativa é a campanha organizada pelo povo Puri da Serra da Mantiqueira, que quer construir a OCA/Museu Inhã Uchô. A reivindicação é para que a Prefeitura de Resende, por meio da Secretaria de Meio Ambiente, reconheça a Mantiqueira como território indígena e o povo Puri o guardião da Serra, devendo ser difundida sua cultura e legado.

A indígena também é escritora e publicou em 2020 o livro “Boacé Uchô: a história está na terra”. Em sua perspectiva, apesar do movimento que vem acontecendo no Brasil e no mundo, a grande maioria das pessoas ainda desconhece a presença dos povos indígenas na política, na educação e em outras instâncias: “tem as questões decoloniais, mas na prática a gente ainda não está vendo as coisas mudarem; então eu vibro para que nós estejamos mais presentes como sempre estivemos.”

Campus da UFJF

Em homenagem ao Abril Indígena, uma série especial de fotos estampa o campus sede com alguns registros da exposição “Maxakali – A resistência de um povo”, em cartaz nas galerias Tchóre, Mehtl’on, e Tlegapé,  da casa-sede do Jardim Botânico. As fotos são de Ramon Raphaelo.

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