Sem renda e impedidos de estudar: pandemia agrava situação de quilombolas em Minas

09/03/2021

No país são 210 quilombolas mortos e 5013 infectados pelo novo coronavírus

Maria Helena, de 32 anos, é moradora do quilombo Moinho Velho – Foto: Federação N’Golo

“Eles que me disseram que eu formei. Na verdade, no ano passado todo só recebi algumas atividades. E aqui sempre foi assim: acabou o ensino médio acabou tudo para nós. A gente fica à espera de um emprego como babá, faxina”. O relato é de Laisa Soares de 18 anos. Nessa idade muitos tentam entrar nas universidades. Isso não é a realidade para ela e os demais jovens de Moinho Velho, quilombo localizado em Senhora do Porto, município da região do Rio Doce em Minas Gerais.

Essa comunidade foi uma das três visitadas pela Federação das Comunidades Quilombolas do Estado de Minas Gerais (N’Golo) e pelo Brasil de Fato no último fim de semana. Foi a segunda viagem da N’Golo para finalizar um projeto de gestão territorial e ambiental, executado em parceria com o Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA) e o Dedicated Grant Mechanism for Indigenous Peoples and Local Communities (DGM – Mecanismo de doação dedicado aos povos indígenas e comunidades locais).

A parceria resultou em uma cartilha sobre os direitos quilombolas.

Educação

“Como vou me preparar para o Enem? O terceiro ano (do ensino médio), no ano passado, eu praticamente não fiz. Simplesmente me mandaram algumas atividades e me aprovaram”. Em razão da pandemia as escolas optaram por aulas online, inacessíveis em Moinho Velho e em tantas outras comunidades quilombolas do estado, em razão da falta de internet adequada. “A gente acessa a internet aqui pelo celular; dá às vezes para ver alguns vídeos no YouTube e também dá para mexer no WhatsApp. Só”, conta.

A pandemia acentuou um velho problema na comunidade: a não continuidade nos estudos. É perceptível a partir da conversa com Laisa que sua antiga escola não a preparou para ingressar na graduação.


Maria Helena, à esquerda, e Laisa, à direita / Foto: Federação N’Golo

Ela, por exemplo, não conhecia seu direito à política de cotas, aos auxílios financeiros concedidos pelas universidades para estudantes de baixa renda, entre outros. Um dos intuitos da cartilha da N’Golo é suprir desconhecimentos como esse. “Eu gostaria de tentar engenharia agronômica. Eu acho que isso vai ser impossível para mim”, concluiu a quilombola. São 70 integrantes no quilombo, ninguém é graduado, e pouquíssimos concluíram o Ensino Médio.

Pandemia

Moinho Velho fica a cerca de 20 quilômetros do centro de Senhora do Porto. A comunidade não recebeu durante a pandemia visitas periódicas de agentes de saúde para divulgar informações sobre a doença, que já matou aproximadamente 260 mil brasileiros. O coronavírus não impediu os trabalhos realizados no quilombo; praticamente agricultura de subsistência e prestação de serviços para fazendeiros da região.

Por parte das autoridades não há um mapeamento de como estão os quilombolas nesta pandemia. “E não vemos nenhuma iniciativa nesse sentido. Tem um apagão de dados oficiais. Isso é um dos efeitos do racismo”, observa Agda Marina Moreira, assessora da Federação N’Golo e pesquisadora em saúde pública.

“Eu gostaria de tentar engenharia agronômica. Eu acho que isso vai ser impossível para mim”

A plataforma online Quilombo Sem Covid-19 (quilombosemcovid19.org), mantida pela Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) e Instituto Sócio Ambiental (Isa), mostra que, no país são 210 quilombolas mortos. 5.013 foram infectados, até o dia 26 de fevereiro. O Rio de Janeiro lidera os óbitos, 30. Em Minas são dois, ambos em Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, o que reflete a ausência de dados amplos em nosso estado.

Também em decorrência da escassez de informações precisas sobre a população quilombola no país, não há como dimensionar o que significam esses números em relação a todos os quilombolas.

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Perda de renda

Afora os danos à saúde, a pandemia impôs ao país consequências econômicas. E foi nesse âmbito que o quilombo Jorges de Água Branca, a 15 km de Peçanha, no Rio Doce, mais sofreu. Os cerca de 100 quilombolas têm uma diversificada produção na agricultura, que é sua maior fonte de renda. É produzido, por exemplo, inhame, cenoura, mandioca e milho. A principal plantação é a de arroz. Eles ainda têm grande produção de quitandas.

Tudo é vendido nas feiras das cidades próximas, as quais estão paralisadas mediante as políticas de isolamento social.

Parte dos moradores de Jorges de Água Branca requisitaram o auxílio de R$ 600 concedido pelo governo federal em 2020. Aposentados não puderam receber o benefício. Os quilombolas mais velhos que complementam a aposentadoria com a agricultura foram os mais prejudicados. Eles são a maioria dos moradores.


Reunião com a Comunidade Quilombola Jorges da Água Branca / Foto: Federação N’Golo

“De modo geral todos tiveram uma grande perda de renda aqui. E a gente não sabe como vão ser os próximos meses”, disse Laudicéia Oliveira Carvalho, de 42 anos.

Ela ainda conta que houve uma omissão por parte das autoridades. “A gente praticamente não recebeu a visita de agentes de saúde. O que algumas famílias receberam foram cestas básicas e máscaras. Não fomos informados também sobre o processo de vacinação. Nós que corremos atrás”, completou Laudicéia.

Terras

Cada quilombo possui distintos desafios e características culturais. Mas a principal luta de todos eles é a propriedade definitiva das terras. De acordo com informações do IBGE, em Minas são 1.027 localidades que abrigam quilombolas. No país são 6.023, espalhadas por 1.672 municípios.

De todos os quilombos em nível nacional, sequer 8% deles são territórios oficialmente regularizados. Em Minas esse percentual não chega a 3%. No estado apenas 22 comunidades quilombolas são regularizadas, conforme o IBGE. Depois da Bahia, Minas é onde há mais quilombos no país. Januária, cidade do Norte mineiro, abriga o maior número de localidades quilombolas no Brasil, 29. Os quilombos visitados pela reportagem não estão entre os regularizados.

A principal luta de todas comunidades quilombolas é a propriedade definitiva das terras

Os quilombolas descendem direta ou indiretamente dos agrupamentos de negros fugidos da escravidão durante o Brasil Colônia e Império. O reconhecimento das localidades quilombolas somente ocorreu por parte do Estado brasileiro há 32 anos, com a Constituição Federal. Em razão da propriedade não regularizada, ao longo da história abundam conflitos entre quilombos, empresas e fazendeiros.

A Constituição de 1988 prevê que o poder público tome o terreno quilombola sob domínio de um terceiro, mediante desapropriação feita por intermédio de indenização. Embora não seja competência exclusiva, o governo federal por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) é o grande responsável por essa regularização.

No atual ritmo de titulações seriam necessários 1.170 anos para concluir processos quilombolas no Incra

A posse não definitiva abre brecha a uma série de violações de direitos, conforme o Brasil de Fato relatou em reportagem sobre a primeira viagem da N’Golo. O quilombo São Félix enfrenta uma situação exemplar.

Uma plantação de eucaliptos circunda toda a comunidade, pertencente ao município Cantagalo, no Rio Doce. Para facilitar o deslocamento da produção, um fazendeiro vizinho construiu uma estrada no território da comunidade, segundo os moradores, sem ao menos, consultá-los, passando por cima de uma sepultura, o que viola seu direito ancestral.

Conflitos

“Os fazendeiros foram tomando as terras ao longo do tempo. Antigamente, o que o pessoal plantava eles consumiam e o excedente vendiam. Mas hoje não há espaço para isso”, disse Joseane Pascoal, de 36 anos. Dessa forma, parte da comunidade é obrigada a procurar outros meios de subsistência nas cidades.

Essa estrada passou aqui por dentro. E a gente não pôde falar nada com medo de retaliação e também com receio deles falarem assim: ‘ah, mostra que a terra é de vocês’”, disse.

“De acordo com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) isso não podia ter acontecido porque ela garante a vocês o direito de terem sido escutados sobre o projeto da estrada antes que ela fosse feita”, explicou Jésus Rosário Araújo, durante reunião com a associação de moradores de São Félix. “Eu entendo agora que meu direito foi violado porque a estrada quase passou dentro da minha casa”, pontuou uma quilombola no encontro.

Em Moinho Velho, além da questão educacional, os moradores também convivem com um conflito semelhante. A plantação de eucaliptos rodeia a localidade. Os quilombolas alegam que com o passar do tempo fazendeiros foram alongando as cercas de suas propriedades. Com isso, asseguram, o terreno do quilombo se reduziu. “A gente sabe que poderíamos plantar não apenas para subsistência, mas para vender e ganhar renda. Mas como fazer isso se não temos terra?”, expôs Ramão Silva, de 64 anos.

“Isso é um grande problema aqui. Para você ter uma ideia disso, a gente precisa instalar uma caixa de água próxima de um poço artesiano para aumentar o abastecimento nosso. O caminhão que levaria a caixa de água até lá tem que passar por dentro das fazendas. O dono delas não deixou. E até hoje estamos sem resolver isso. Mas já acionamos o Ministério Público que falou que vai nos ajudar”, completou Ramom.

Reconhecimento

O certificado de reconhecimento de quilombos, documento que algumas das comunidades quilombolas em Minas possuem, é o primeiro passo à titulação definitiva. Logo, uma área não regularizada, mas de posse desse certificado, não é sinônimo de terra sem dono. Em razão disso, a intromissão nos quilombos, sem consentimento, é ilegal.

Na região Centro-Oeste e Rio Doce, ao longo da viagem, a paisagem é preenchida por empreendimentos de eucalipto. Geralmente, os primeiros a sofrerem com o avanço de tais atividades são os povos tradicionais, como os quilombolas.

Um relatório da Fundação Getúlio Vargas, sobre a produção de eucalipto, afirma que “enquanto uma fazenda de 500 hectares de agricultura familiar oferece cerca de 200 vagas de emprego, a de eucaliptocultura oferta apenas três. A concentração fundiária também se alinha nesse contexto, fortalecendo o deslocamento das famílias para os centros urbanos”, aponta o documento.

Terras devolutas

Em Minas Gerais, a maior parte das áreas em que há conflitos fundiários estão em terras devolutas do governo mineiro, segundo a Federação N’Golo. Tratam-se de imóveis pertencentes ao Executivo sem destinação específica. Segundo o movimento quilombola, o Estado permite a grandes fazendeiros o usufruto da terra ao invés de amparar os quilombos. À reportagem, o governo de Minas não soube informar precisamente a situação das terras devolutas. Não informou a quantidade delas e seu uso.

Cálculos da ONG Terra de Direitos atestam que no atual ritmo de titulações seriam necessários 1.170 anos para que todos os 1.716 processos de propriedade definitiva dos quilombolas abertos no Incra sejam concluídos.

Trabalho da N’Golo

Além da entrega das cartilhas, a federação realizou uma roda de conversa nos quilombos em que esteve. O intuito foi discutir o rol de direitos dos quilombolas, mencionados no material. São 26 ao todo, desde artigos constitucionais até as normativas.

A Federação N’Golo irá também disponibilizar R$ 2,5 mil para as comunidades visitadas atuarem na prevenção e combate à pandemia. O recurso é oriundo de doações que foram realizadas por meio de vakinha online e por um auxílio emergencial disponibilizado pelo CAA/DGM Brasil às entidades com as quais possuem projetos em andamento. “Sabemos que é um valor simbólico. E a gente quer que vocês decidam a destinação desse dinheiro”, afirmou Jésus.

As viagens da entidade não terminaram. A conclusão delas será no próximo fim de semana. Ocorrerá idas em quilombos e um encontro presencial com líderes quilombolas para a finalização das atividades. O objetivo também é levantar e encaminhar demandas. Tudo será feito dentro dos protocolos de segurança em decorrência da pandemia.

Edição: Elis Almeida

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