João Marcos Mendonça, que é roteirista dos gibis da ‘Turma da Mônica’, viu de perto o drama de Governador Valadares e do Rio que a tragédia contaminou

João Marcos Mendonça, autor da HQ 'Doce amargo', tem uma longa trajetória voltada aos livros para crianças e praticamente precisou reaprender a desenhar ao produzir uma HQ de não ficção

Há exatamente dez anos, na tarde de 5 de novembro de 2015, no distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG), a barragem de Fundão, da mineradora Samarco, se rompeu. O desastre liberou cerca de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração, formando uma onda de lama que destruiu completamente o vilarejo, causou 19 mortes e deixou centenas de desabrigados. Além disso, contaminou o Rio Doce, percorrendo mais de 600km até alcançar sua foz, em Linhares, no Espírito Santo. Foi, até então, a maior tragédia ambiental do país, pois, quatro anos depois, ocorreu o desastre em Brumadinho, com quase 300 mortos.

 

Uma das cidades mais afetadas pela tragédia de 2015 foi Governador Valadares, o maior centro urbano da Bacia do Rio Doce, com quase 300 mil habitantes e dependência total do rio para o abastecimento de água. Quando a onda de lama e rejeitos chegou lá, uma semana depois, o fornecimento precisou ser interrompido por vários dias, já que não havia outra fonte alternativa em escala suficiente.

Diário da tragédia

 

Natural de Ipatinga, também em Minas Gerais, mas cidadão de Governador Valadares, João Marcos Mendonça acaba de lançar Doce Amargo (Nemo), um relato em quadrinhos daquele período extremamente difícil que ele e a família viveram.

João Marcos conta que a ideia da HQ surgiu pouco depois da chegada da lama à cidade. À medida que percebia o que vivia, começou a registrar tudo em um diário, já pensando em um roteiro para quadrinhos.

— O rio é a única fonte de abastecimento de água da cidade, e foi contaminado pela lama de rejeitos. Na época, Governador Valadares tinha 280 mil habitantes e ficou dez dias sem água — explica o quadrinista, que também é professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Vale do Rio Doce. — As doações que chegavam não davam conta da demanda, e nas filas de distribuição houve saques, brigas, violência. O Exército precisou atuar para tentar organizar o caos. A cidade entrou em colapso. Quando a água voltou a ser captada do rio, a população tinha medo de usar e consumir.

Roteirista há quase 20 anos das revistinhas da Turma da Mônica e consagrado por quadrinhos infantis autorais — com personagens próprios, como Mendelévio e Telúria (homenagem a elementos da tabela periódica) —, João Marcos admite que não foi fácil desenvolver uma história com um tom mais sóbrio.

— Sempre trabalhei para o público infantil, e o meu traço reflete as características desse tipo de trabalho: figuras e cenários desproporcionais e exagerados, a essência do cartum — conta o autor, premiado com o HQ Mix por sua pesquisa sobre o uso dos quadrinhos na educação. — Minha intenção era que outra pessoa desenhasse, mas meu editor me convenceu de que a história ganharia mais força com meu traço, pois era muito pessoal. Então, foi como se eu estivesse reaprendendo a desenhar. Quase desisti no início, mas gostei das soluções que encontrei no processo.

Qualidade da água hoje

 

Sua intenção foi mostrar a dimensão humana da tragédia, principalmente os pequenos acontecimentos do cotidiano — a vida ordinária e as consequências que muitas vezes passam despercebidas numa catástrofe dessa dimensão. E, dez anos depois, surge a dúvida de como está o rio que, de doce, virou amargo no título do livro:

— Essa é a pergunta que todo mundo da cidade faz. Hoje temos uma versão oficial, em que tudo está lindo e o rio recuperado. Do outro lado, há a versão dos atingidos e dos especialistas, que dizem que as coisas não são bem assim. De minha parte, tenho muitas dúvidas sobre a qualidade da água captada no rio. Passados dez anos, até hoje usamos água mineral para consumo e preparo dos alimentos.

‘Doce amargo’

Autor: João Marcos Mendonça. Editora: Nemo. Páginas: 184. Preço: R$ 99,80.

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