Programa do governo Bolsonaro impõe interesses privados em territórios de comunidades tradicionais

21/09/2021

Texto: Caroline Nunes | Edição: Nadine Nascimento | Imagem: Reprodução/Agência Brasil

Fonte:https://almapreta.com/sessao/politica/programa-do-governo-bolsonaro-impoe-interesses-privados-em-territorios-de-comunidades-tradicionais

Segundo o relatório da Terra de Direitos, os territórios adotados no Programa ‘Adote um Parque’ servem como lar de 2 mil famílias entre indígenas e quilombolas, que agora ficam à mercê dos interesses de empresas privadas

 

A organização Terra de Direitos, em conjunto com a FASE (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional), elaborou um relatório que mostra que o programa Adote Um Parque, do Governo Federal, viola direitos e ameaça a autonomia de comunidades tradicionais – indígenas e quilombolas – da Amazônia. A análise, denominada “Programa Adote um Parque: privatização das áreas protegidas e territórios tradicionais”, aponta que, até o momento, 132 unidades de conservação foram incluídas na proposta, sendo oito delas adotadas por grandes empresas, como Carrefour, Coca Cola e Heineken.

As unidades adotadas são também o território onde vivem mais de 2 mil famílias tradicionais que, segundo a Terra de Direitos, ficam à mercê das empresas cujo interesse na adoção não está explícito. “Com a concessão das áreas para empresas, a autonomia desses povos sobre seus territórios está gravemente ameaçada”, diz a organização.

A Terra de Direitos, no entanto, explica que os interessados devem apresentar propostas de adoção ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que é o órgão federal responsável pela avaliação e aprovação delas. O decreto estabelece que a formalização da adoção deve ser feita por meio de um termo específico, acompanhado de um plano de trabalho a ser firmado entre o ICMBio e o adotante, com o detalhamento dos bens e serviços a serem doados, o prazo de vigência, o valor da adoção e os benefícios ao adotante.

“Em uma leitura atenta do Decreto, percebem-se várias brechas e inconsistências, destacando-se a não previsão de processos e instrumentos de transparência e/ou consulta aos povos e comunidades tradicionais que vivem nas UCs, violando uma série de preceitos constitucionais e acordos internacionais”, diz o texto.

A análise também mostra que o Adote Um Parque foi lançado sem nenhum tipo de diálogo ou consulta junto aos conselhos das unidades de conservação e à sociedade civil. Além disso, o decreto estabelece que os adotantes, ao investirem em bens e serviços, podem ter benefícios.

Vantagens para empresas representam risco às comunidades tradicionais

Os benefícios para as empresas privadas adotantes incluem: a instalação de elementos identificadores do adotante na unidade de conservação federal ou no seu entorno, conforme previsto no termo de adoção; a inserção da identificação do adotante nas sinalizações da unidade de conservação federal; o uso nas publicidades próprias dos slogans de termos como “uma empresa parceira” da unidade de conservação federal adotada, do bioma ou da região em que a unidade se localiza; e a utilização da unidade de conservação federal para atividades institucionais temporárias.

“Além de favorecer a governança privada sobre territórios de interesse coletivo e social, o Adote Um Parque não reconhece o poder de decisão dos povos e comunidades tradicionais desde o seu lançamento, até a escolha das unidades de conservação que serão disponibilizadas e escolhidas para adoção por terceiros”, ressalta a pesquisa.

Outro ponto de destaque no relatório é a falta de consulta e transparência do programa: “Junto aos conselhos das unidades de conservação, somada às demais irregularidades mencionadas, configura séria violação à estrutura do SNUC [Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza] e uma ameaça às áreas protegidas brasileiras, desrespeitando os marcos legais que as instituem e regulamentam”, diz o texto.

Propostas de adoção

“De fevereiro a de abril de 2021, oito empresas enviaram propostas de adoção. Nenhum desses protocolos ou os Termos de Adoção e Planos de Trabalho relativos às adoções foram publicados pelo governo federal, de modo que as negociações seguem ocorrendo a portas fechadas, sem transparência para a sociedade civil e para os conselhos gestores das UCs”, avalia a análise.

O total investido por essas oito empresas alcançou a marca de R$ 6.069.550,00. Dentre as adotantes, destacam-se o grupo Carrefour, a Heineken e a Coca Cola. Em sua política de meio ambiente, o Carrefour afirma contribuir para o Desmatamento Zero e atuar para engajar suas cadeias produtivas de commodities em modelos mais sustentáveis. No entanto, a rede de supermercados possui uma série de violações ambientais e de direitos humanos em suas cadeias produtivas, como aponta o relatório “Por Trás das Suas Compras”, da Oxfam Brasil.

Ainda segundo o relatório, a Heineken, companhia multinacional holandesa do setor de bebidas, busca fortalecer sua imagem de empresa responsável social e ambientalmente por meio de seus projetos de sustentabilidade. “No entanto, adota um território quilombola [Quilombo Flexal, no Maranhão) sem o consentimento da população residente e sem nenhuma transparência do que está em jogo”, diz o texto. A empresa foi consultada durante a realização da pesquisa para mais informações sobre sua adesão ao Adote Um Parque e não houve resposta aos questionamentos feitos.

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A Coca-Cola, por sua vez, de acordo com dados do ICMBio e Funai, adotou a ARIE Javari-Buriti, território que possui sobreposição de 2,10% com a Terra Indígena Betânia, do Povo Ticuna. “Qual o interesse da Coca-Cola em uma área alagada que não é ocupada e não possui nenhuma estrutura construída?”, questiona a pesquisa. Segundo informações da Terra de Direitos, a Coca-Cola também foi consultada durante a realização desta pesquisa para mais informações sobre sua adesão ao programa, mas também sem resposta..

Perda de autonomia e meios de proteção

Segundo o relatório, as ameaças que o Programa Adote um Parque representam aos territórios tradicionais partem de um vetor principal, direcionado pelas empresas para as comunidades: a perda da autonomia.

“A autonomia, diferente da liberdade, representa não só o direito de fazer, mas de fazer do seu modo. A imposição de novas formas de viver o território representa o pilar das ameaças que as empresas apresentam ao condicionarem os usos dos territórios aos seus benefícios, ou contrapartidas”, reforça.

Para a Terra de Direitos, existem apenas três maneiras de proteger os territórios da exploração. A primeira é por meio da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, “principal marco abaixo da Constituição Federal para direitos étnicos no Brasil ao tratar de territórios, consulta prévia e direito à vida que estipula que a atuação dos Estados nacionais deve ser pautada na ruptura do assimilacionismo e integracionalismo”, diz.

O segundo, de acordo com o informe, são os os protocolos de consulta, instrumentos de produção própria dos grupos étnicos para expressarem e divulgarem suas regras internas. Por último, o relatório aponta os conselhos deliberativos: “Ainda que limitado, se aliado aos dois outros instrumentos pode ser fundamental instrumento de gestão participativa de Unidades de Conservação”, finaliza.

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