Luta e solidariedade: lider quilombola, Jesus Rosário conta como as comunidades têm enfrentado a COVID-19

26/06/2020

Luiz Felipe Estevanim

Fonte:https://radis.ensp.fiocruz.br/index.php/home/entrevista/luta-e-solidariedade

Indaiá é uma palmeira solitária de onde se extrai não somente o palmito, mas a palha para a confecção de artesanato. Nativa em Minas Gerais, ela dá nome à comunidade quilombola onde vive Jesus Rosário, entre os municípios mineiros de Antônio Dias e Santa Maria de Itabira, na região do Vale do Aço. É também símbolo da trajetória extrativista e da relação dos quilombolas com a terra. Com a chegada do novo coronavírus, essa população encontra dificuldade para escoar a produção e precisou interromper atividades essenciais para seu sustento. “O risco maior nessas comunidades é pela forma de vida. A disseminação da doença é muito mais rápida por causa dessa forma de ser e de fazer, em que quase tudo é coletivo”, explica Jesus, que é presidente da Federação das Comunidades Quilombolas de Minas Gerais (N’Golo).

“As comunidades estão, em sua grande maioria, localizadas em lugares de difícil acesso. Geralmente não contam com transporte: nem transporte público ou escolar, nem para atender as necessidades de saúde”, descreve Jesus. Depois do período de chuvas em Minas Gerais, as estradas também se encontram danificadas, o que dificulta ainda mais a locomoção. Com a covid-19, enfrentam não somente o risco da doença, mas a ameaça da fome. “Um dos grandes problemas é a não demarcação do território das comunidades. Sem o reconhecimento e a demarcação, não se consegue desenvolver política nenhuma”, conta.

A solidariedade, contudo, foi o caminho encontrado pelos quilombos para superar os impactos trazidos pela pandemia. “Temos comunidades com produções razoáveis e as famílias saem de um mercado que é puramente capitalista e estabelecem relações de cooperativismo. As comunidades passam a distribuir os produtos entre os seus membros para que outros não passem necessidade”, destaca. A N’Golo tem arrecadado também cestas básicas e kits de higiene e distribuído para as famílias. E dos próprios quilombos surgem soluções que valorizam os laços comunitários. “O dinheiro deixa de ser a única moeda de troca e de acesso a esses alimentos. As pessoas começam a trocar o que produzem para que todos tenham acesso à alimentação nesse momento de pandemia”, afirma. Em entrevista à Radis, ele abordou ainda o descaso do Estado em relação a essas populações e os recentes ataques do presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, ao movimento negro.

“A grande maioria das comunidades tem extrema dificuldade para acessar os serviços de saúde” Jesus Rosário, presidente da N’Golo

Quais as dificuldades dos quilombos para enfrentar a pandemia de covid-19?

As comunidades estão, em sua grande maioria, localizadas em lugares de difícil acesso. Geralmente não contam com transporte: nem transporte público, nem para atender as necessidades de saúde. Muitas vezes nem escolar. Também saímos de um período longo de chuvas em que as estradas das comunidades foram danificadas, o que dificulta ainda mais a locomoção. Por não terem território, elas hoje produzem muito pouco. Precisam acessar os centros urbanos para comprar alimentos e itens de consumo. Aqui em Minas Gerais, temos ainda muitas comunidades com dificuldade de acesso à água, em regiões de semiárido, no Norte e Nordeste do Estado. São todas essas dificuldades que a gente está enfrentando.

Como a realidade histórica vivenciada pelos quilombos, que inclui o abandono e o descaso do Estado e dificuldades para acessar políticas públicas, se reflete nesse contexto da pandemia?

Um dos grandes problemas é a não demarcação do território das comunidades. Sem o reconhecimento e a demarcação, não se consegue desenvolver política nenhuma. Às vezes é muito difícil o acesso à educação e à saúde justamente por isso, porque o território não garante que esses equipamentos sejam instalados dentro da comunidade. Por estarem localizadas onde estão, muitas vezes essas comunidades são penalizadas e não contam com transporte escolar ou equipes de Saúde da Família.

Que saídas e mobilizações têm sido buscadas pelas comunidades para superar as dificuldades?

A gente enquanto Federação das Comunidades Quilombolas de Minas Gerais tem procurado contato tanto com governos quanto com outros parceiros para acessar o mínimo para essas comunidades, que de início são cestas básicas e kits de higiene. Por outro lado, a gente tem testemunhado também a solidariedade entre os quilombolas. Temos comunidades com produções razoáveis e as famílias saem de um mercado que é puramente capitalista e passam a estabelecer relações de cooperativismo. As comunidades passam a distribuir os produtos de forma que seus membros e outras comunidades não passem necessidade. O dinheiro deixa de ser a única moeda de troca e de acesso aos alimentos. As pessoas começam a trocar o que produzem para que todos tenham acesso à alimentação nesse momento de pandemia.

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Qual é o papel da agroecologia na luta quilombola?

Buscamos produzir comida de verdade, sem veneno. Eu sempre faço questão de reforçar: nós somos povos que aprendemos a ter a natureza como aliada e não encarar a natureza como algo que tem que ser domesticado ou dominado. Ao longo da existência dessas comunidades, nós temos buscado formas de nos aproximar e entender como a natureza pode nos ajudar, ao invés de competir com ela.

A maioria das comunidades são rurais. Que dificuldades são vivenciadas para acessar os serviços de saúde e as políticas públicas?

A grande maioria das comunidades tem extrema dificuldade para acessar os serviços de saúde. Até pouco tempo atrás, eram acompanhadas pelo programa Saúde da Família. Ao invés das comunidades irem até os postos de saúde, as equipes é que iam às comunidades. A partir de 2016, temos o rompimento dessa lógica e não conseguimos fazer mais com que essa política funcione. As comunidades não têm acesso a transporte público. A ida até às unidades de saúde tem sido uma dificuldade. Sem contar que a gente tem vivenciado um momento de envelhecimento da nossa população, em que o deslocamento se torna ainda mais complicado. Temos enfrentado muitos problemas no acesso aos serviços de saúde. Isso quando tem. Porque além dessas comunidades estarem na zona rural, a maioria delas está em municípios muito pequenos onde não há serviço de saúde. O atendimento é feito em outro centro urbano.

E como tem sido a luta e a resistência em sua própria comunidade?

Eu venho de uma comunidade de trajetória extrativista, que se chama Indaiá. Indaiá é uma palmeira da qual a gente não extrai somente o palmito, mas também a palha para a confecção de artesanato. É uma comunidade muito longe da sede do município, a cerca de 70 quilômetros. Não temos transporte público e somos rodeados por outros municípios onde a comunidade acaba tendo sua vida social e política, como Santa Maria de Itabira e Itabira. A grande parte dos quilombolas vão até essas cidades porque prestam serviço lá. É uma comunidade que podemos dizer que é quase autossuficiente. Nesse momento, a gente produz grande parte do que consome e com isso a questão do isolamento com a pandemia talvez não tenha impactado tanto nossa comunidade por causa da produção diversificada e que dá para sustentar todos aqueles que vivem em nosso território.

Há relatos ou suspeitas de covid-19 nas outras comunidades da região?

O meu quilombo se divide entre os municípios de Antônio Dias e Santa Maria de Itabira. Na parte de Santa Maria, no Barro Preto, a gente já tem casos confirmados de covid-19. Na comunidade de Carrapatos, em Bom Despacho, a gente também já tem casos. As nossas comunidades têm sua forma de vida quase toda coletiva. Então, se uma pessoa for contaminada, isso espalha rapidamente por causa da forma de vida nos quilombos. Ao mesmo tempo, nem o estado ou o município oferecem testagem em massa para a gente saber quantas pessoas já foram contaminadas. Temos relatos, mas não temos confirmação em quilombos de alguns municípios de Minas Gerais porque as pessoas morreram sem fazer o teste. O risco maior nessas comunidades é pela forma de vida. A forma de disseminar a doença é muito mais rápida por causa dessa forma de ser e de fazer, onde quase tudo é coletivo. Sem contar que as famílias quilombolas são relativamente grandes. São famílias que têm entre cinco e dez membros. Para disseminar de uma família para outra, é muito rápido.

Como você avalia a postura do presidente da Fundação Palmares de ataques ao movimento negro e à memória do movimento quilombola?

O nosso temor era que, com a eleição do presidente [Jair Bolsonaro], as coisas já ficassem muito difíceis, como já ficaram, para as comunidades quilombolas. Colocar uma pessoa como Sérgio Camargo na Fundação Cultural Palmares significa que as comunidades quilombolas não terão mais acesso às políticas públicas. Porque ele é totalmente contra todas as políticas para a negritude. A Fundação Palmares é a porta de entrada para o acesso às políticas públicas para os quilombolas. É ela que faz a emissão da certidão de autorreconhecimento dessas comunidades. Somente após essa certificação, as comunidades têm acesso às políticas públicas. Se assume um presidente que é contra as políticas públicas, contra as comunidades quilombolas e as formas de organização da negritude, isso quer dizer que não haverá política pública e as comunidades continuarão penalizadas, principalmente frente à pandemia. Quando a comunidade é certificada pela Palmares, a gente consegue ter acesso em outras políticas, como o CRAS [Centro de Referência de Assistência Social] e o Pronaf [Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar]. Mas todas passam pela certificação das comunidades. E se a Palmares não cumpre com sua responsabilidade, as comunidades ficarão totalmente excluídas de acessar qualquer política ou direito que sejam destinados a elas.

Leia na Radis 214 (julho) nossa reportagem sobre a luta das comunidades remanescentes de quilombos em tempos de pandemia.

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