Especialistas consideram medida importante, mas enfatizam a necessidade de ações educativas

Na Bahia, monumentos e terreiros são alvos frequentes de ataques

Na Bahia, monumentos e terreiros são alvos frequentes de ataques – 

A recente sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para a Lei (nº 14.532), que equipara os crimes de injúria racial e racismo dada no último dia 11, aumenta a pena para quem praticar intolerância religiosa no Brasil. Em meio ao novo cenário, a medida é considerada importante para o combate ao racismo religioso sofrido pelas religiões de matriz africana, diante do crescimento do número de casos no país. Segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos, em 2022 foram 1.200 ataques motivados por intolerância religiosa, o que corresponde a um aumento de 45% em relação a 2020. Na Bahia, monumentos e terreiros são alvos frequentes de ataques de quem não respeita a liberdade religiosa assegurada pela Constituição Federal.

A legislação prevê pena de dois a cinco anos para quem obstar, impedir ou empregar violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas. A pena será aumentada a metade se o crime for cometido por duas ou mais pessoas, além de pagamento de multa. Anteriormente, a lei estabelecia pena de um a três anos de reclusão.

No dia 4 de dezembro, a estátua em homenagem à Mãe Stella de Oxóssi amanheceu incendiada. A obra fica na avenida que leva o nome da conhecida ialorixá baiana, na ligação da Avenida Paralela com a orla de Stella Maris, em Salvador. Não foi a primeira vez que o monumento foi depredado. Em 2019, ele também foi vandalizado com pichações. A violência se repete em outros pontos da cidade, como o busto de Mãe Gilda, no bairro de Itapuã, que se tornou um símbolo de resistência ao racismo religioso e inspirou o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, celebrado neste sábado, 21, e instituído oficialmente em 2007.

No dia 4 de dezembro, a estátua em homenagem à Mãe Stella de Oxóssi amanheceu incendiada
No dia 4 de dezembro, a estátua em homenagem à Mãe Stella de Oxóssi amanheceu incendiada|  Foto: Olga Leiria | Ag. A TARDE

 

Fundadora do terreiro de candomblé Ilê Axé Abassá de Ogum, próximo à Lagoa do Abaeté, a ialorixá e ativista social, Gildásia dos Santos e Santos, conhecida como Mãe Gilda, morreu após o agravamento dos problemas de saúde em decorrência dos ataques de ódio e agressões verbais e físicas que sofreu de representantes de outras religiões dentro de seu próprio terreiro.

A ialorixá baiana virou alvo de ataques e de uma campanha de difamação por conta da sua vivência no candomblé. Em 1999, uma foto sua foi publicada pela Folha Universal, jornal da Igreja Universal do Reino de Deus, junto a um texto que acusava religiões de matriz africana de charlatanismo. Em 2000, ela foi vítima de um infarto fulminante em consequência, de acordo com a sua família, desses acontecimentos, que a abalaram profundamente. Atualmente, o Ylê Axé Abassá de Ogum é regido pela ialorixá Jaciara Ribeiro dos Santos, Mãe Jacira de Oxum, filha de Mãe Gilda.

Autor do livro Intolerância Religiosa, o babalorixá e professor Sidnei Nogueira, diz que a diferença entre os termos racismo religioso e intolerância religiosa se dá pelo fator racial, principalmente quando se refere à perseguição contra as religiões de matriz africana.

“A diferença central entre racismo religioso e intolerância religiosa é o componente racial. O racismo religioso se volta para as origens negras, africanas das religiões afro diaspóricas, afro indígenas no Brasil”, diz.

 

Professor Sidnei é babalorixá e autor do livro Intolerância Religiosa

Professor Sidnei é babalorixá e autor do livro Intolerância Religiosa|  Foto: Arquivo Pessoal

Em relação ao combate do racismo religioso, ele destaca a importância do diálogo inter-religioso no enfrentamento do discurso de ódio no país. “Nós precisamos entender e dialogar, nos conhecer. Diferentes lideranças religiosas precisam sentar à mesa para conversar por conta desse movimento de ódio e violência em que vivemos, onde odiar é imperativo. Inclusive, odiar as pessoas por conta da cultura religiosa e o campo religioso vira um campo de batalha”, ressalta.

O professor considera a lei uma medida de reparação histórica importante para a comunidade tanto para o âmbito religioso quanto para os crimes de racismo. Além disso, ele reforça que o dia 21 de janeiro é uma data para relembrar a existência das religiões de matriz africana no Brasil.

“Eu avalio positivamente, são movimentos de reparação histórica. Nós sabemos o quanto o racismo e os racistas se sentiam confortáveis na lei de injúria racial. Nós temos mais um instrumento para a luta antirracista para lutar contra o racismo. É importante que essa dimensão jurídica se faça presente e a dimensão simbólica das datas que nos lembrem e lembrem a todos os brasileiros que nós existimos, podemos existir e existimos institucionalmente”, destaca.

Contexto histórico

Para a promotora de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA), Lívia Sant’Anna Vaz, a data é um marco para reflexão e continuidade do enfrentamento da intolerância religiosa no estado e no país como um todo. Ela também pontua que, ao longo da história do Brasil, há uma perseguição e criminalização das religiões de matriz africana.

“Eu costumo dizer que a intolerância religiosa é uma espécie de guarda chuva porque ela pode atingir todo e qualquer segmento religioso. Mas, no Brasil, nós temos um foco desse tipo de manifestação contra as religiões de matriz africana. Isso não é à toa. Isso se dá justamente pelas origens negras, pela matriz africana. Portanto, se fala de racismo religioso. É uma aversão às religiões que são manifestações históricas, tradicionais de pessoas que vieram da África para o Brasil. Então, o racismo religioso está muito presente no nosso país desde uma perspectiva histórica até as práticas cotidianas. A gente costuma dizer que todas as rodas negras no Brasil foram perseguidas, as rodas de samba, as rodas de capoeira, as rodas candomblé”, aponta.

Com pesquisa focada nas Arquiteturas Afro-brasileiras, o professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Fábio Velame, destaca, assim como a promotora, que a intolerância e desrespeito às religiões de matriz africana foram perpetuadas ao longo da história brasileira.

“As religiões de matriz africana, os terreiros sempre foram alvo do estado racial brasileiro. A gente tem desde o século 19 a perseguição por parte do estado no sentido de terem uma concepção de que os terreiros eram uma espécie de quilombos, ajuntamentos de escravos e focos de revoltas escravas. Com a Primeira República e a entrada das teorias raciais, as religiões de matriz africana passaram a ser criminalizadas pelo código penal brasileiro, como crime de feitiçaria, charlatanismo e falsa medicina. Houve uma verdadeira cruzada por parte do estado que, a partir de uma perspectiva eurocêntrica, queria erradicar qualquer vestígio de africanidade na sociedade brasileira”, afirma.

Ainda segundo o professor, a legislação é importante para coibir as ações criminosas contra as religiões de matriz africana no estado, mas não é a única medida que deve contribuir para um cenário de maior respeito à liberdade religiosa. Para ele, é fundamental que o processo educativo seja fortalecido e difundido na sociedade.

“É muito importante porque é um crime que precisa ser combatido. O racismo é um problema estrutural que está inserido nos aspectos socioeconômicos. Atos racistas e de intolerância religiosa precisam ser combatidos também nas instituições. É uma medida importante, mas precisamos avançar no processo educativo, de campanhas de conscientização, de valorização e preservação por parte do estado”, reforça.

Iniciativas

Com a atuação específica na Promotoria de Justiça de Combate ao Racismo e coordenação do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do MPBA (GEDHDIS), a promotora Lívia Sant’Anna Vaz tem desenvolvido com o MP-BA projetos voltados ao enfrentamento da intolerância religiosa no estado, a exemplo do Ministério Público e Terreiros em Diálogos Construtivos. A iniciativa busca informar, combater o preconceito e a intolerância religiosa e estimular o conhecimento das leis e dos direitos dos cidadãos.

 

Para a promotora, o principal objetivo é ‘aproximar as comunidades de religiões de matriz africana dos poderes públicos’ para a manutenção e garantia de direitos. O projeto é vencedor da categoria Ministério Público da 19ª edição do Prêmio Innovare em 2022. Esta é a segunda vez, em dois anos consecutivos, que a promotora é indicada como finalista pela premiação. Em 2021, ela recebeu menção honrosa com o aplicativo Mapa do Racismo e da Intolerância Religiosa.

“É importante dizer que é muito emblemático a gente ter um reconhecimento nacional no prêmio Innovare, que é tido como um ‘Oscar’ na reconstrução e busca de valores democráticos e seja reconhecida e premiada para que ela inspire outras práticas de impulsionar a igualdade da liberdade religiosa. Porque não basta a gente ter liberdade religiosa e só algumas pessoas poderem gozar de fato desse direito. É preciso falar de igualdade na liberdade religiosa, respeito inter-religioso. Essa prática vai buscar justamente esse fomento”, explica.

A promotora de Justiça, Lívia Sant'Anna Vaz, pontua que, ao longo da história do Brasil, há uma perseguição e criminalização das religiões de matriz africana
A promotora de Justiça, Lívia Sant’Anna Vaz, pontua que, ao longo da história do Brasil, há uma perseguição e criminalização das religiões de matriz africana|  Foto: Felipe Iruatã | Ag. A TARDE

 

Criada em 2017, a iniciativa, segundo a promotora, surgiu a partir dos atendimentos na Promotoria de Combate ao Racismo e Intolerância Religiosa, do MP-BA. “Nós identificamos uma dificuldade dos povos de terreiros em acessarem serviços públicos e até mesmo autoridades policiais e autoridades públicas, que teriam a missão de investigar, processar e responsabilizar as pessoas pelo crime de intolerância religiosa. Então, com esses relatos e práticas cotidianas, criamos esse projeto que tem a intenção de quebrar barreiras, de aproximar as comunidades de religiões de matriz africana dos poderes públicos”, acrescenta.

Os agentes públicos visitam os terreiros para falar aos adeptos de seus direitos, oferecer os serviços disponíveis, entender as demandas e pensar soluções. “É preciso conduzir o poder público ao encontro dos povos de terreiros e demonstrar, por meio do diálogo construtivo, o interesse em reverter o quadro atual de exclusão”, defende.

 

A metodologia inclui consulta prévia aos interessados sobre os temas e a melhor forma de divulgar o evento, assim como a verificação de quais templos têm condições de sediar os encontros. Em seguida, de acordo com o tema definido, identificam-se os órgãos públicos de todas as esferas que podem contribuir para a solução emergencial e definitiva dos problemas.

No dia do evento, os participantes fazem uma reunião de alinhamento para decidir quais informações e soluções serão apresentadas ao coletivo e quais os compromissos que cada parceiro pode assumir nas soluções. À tarde acontece o encontro nos terreiros, com a exposição sobre o funcionamento de cada órgão e das propostas de soluções para os problemas citados e orientações sobre os próximos passos.

Ao fim de cada ciclo, a promotoria instaura um procedimento administrativo para a garantia do resultado do encontro, com expedição de ofícios, notas técnicas e recomendações, além da realização de diligências. No encontro seguinte, o MP informa o seguimento e os avanços das questões solicitadas.

“Essa iniciativa é voltada para as comunidades de terreiro, mas muitas vezes os servidores são de outras religiões e eles comparecem, fazem os encaminhamentos necessários. É importante que a gente tenha respeito acima de tudo, mais que tolerância. É importante respeitar a fé do outro, a religião de todas as pessoas, até mesmo a ausência de crença em qualquer Deus, em qualquer religião”, ressalta.

Denúncia

Além do projeto Ministério Público e Terreiros em Diálogos Construtivos, a Promotoria de Justiça de Combate ao Racismo e o Centro de Apoio Operacional dos Direitos Humanos (Caodh) desenvolveram o aplicativo Mapa do Racismo e da Intolerância Religiosa. O aplicativo possibilita a qualquer pessoa encaminhar diretamente ao MP-BA denúncias de crimes de racismo, injúria racial e intolerância religiosa ocorridos no território estadual. O serviço também oferece a opção de denúncia anônima e segura, e funciona, ainda, como facilitador do acesso de toda a população a materiais educativos sobre a temática das relações étnico-raciais.

“Isso desburocratiza, aproxima as pessoas do MP no que tange o enfrentamento aos crimes de racismo e intolerância religiosa de um modo geral, mas também não é o único canal. É importante destacar isso”, diz a promotora.

Ainda no âmbito das iniciativas estaduais, as vítimas de agressões físicas ou verbais em função de crenças e práticas religiosas podem encontrar apoio psicológico, social e jurídico no Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela, equipamento vinculado à Secretaria de Promoção da Igualdade Racial e dos Povos e Comunidades Tradicionais (Sepromi), em Salvador.

O Centro funciona de segunda a sexta-feira, das 9h às 12h e das 14h às 18h, na Avenida Manoel Dias da Silva, no bairro da Pituba. Além do atendimento presencial, as denúncias podem ser encaminhadas ao órgão por telefone (3117-7448) e e-mail (cr.racismo@sepromi.ba.gov.br).

De acordo com a titular da Sepromi, Ângela Guimarães, a falta de conhecimento para identificar e registrar as violações têm resultado na subnotificação dos casos na unidade. Para ela, o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa é uma oportunidade de promover informação sobre o tema e fortalecer a luta por respeito às diferenças.

“Nos últimos quatro anos, o ódio religioso, sobretudo contra as religiões de matriz africana, foi estimulado por um governo federal racista e fundamentalista. Mesmo com os diversos casos divulgados pela mídia, o número de registros ainda é tímido. Foram 37 denúncias recebidas pelo Centro de Referência Nelson Mandela em 2022, contra 52 ocorrências em 2019. Além da falta de informação, a pandemia e o cenário político-social contribuíram na redução das notificações”, afirma.

A titular da Sepromi, ângela Guimarães, fala sobre dificuldades relacionadas às subnotificações
A titular da Sepromi, ângela Guimarães, fala sobre dificuldades relacionadas às subnotificações|  Foto: Rafaela Araújo | Ag. A TARDE

 

Ainda segundo dados da Sepromi, em 2021 foram registradas 30 denúncias referentes ao crime de intolerância religiosa. Já em 2020, o Centro recebeu 38.

Criado em dezembro de 2013, o Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela recebe, encaminha e acompanha toda e qualquer denúncia de discriminação racial ou de violência que tenha por fundamento a intolerância racial ou religiosa. O local dispõe ainda de uma biblioteca especializada em relações étnico-raciais e espaço para encontros sobre a temática. A unidade é uma das portas de entrada dos casos acompanhados pela Rede de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa, composta por instituições do poder público, universidades federais e estaduais, órgãos que formam o Sistema de Acesso à Justiça e um conjunto de organizações da sociedade civil de Salvador e do interior.

Sobre a atuação de combate à intolerância religiosa, a titular da Sepromi conta que, além do suporte do Centro, as ações são voltadas para a conscientização e educação tanto dos agentes públicos quanto da população.

“Nós temos tido aqui na Secretaria ações pelo menos voltadas em duas dimensões. A primeira é a educativa por meio de campanhas institucionais, formação de agentes públicos, parceria com a sociedade civil organizada em torno desse tema na divulgação da legislação antirracista e do nosso estatuto estadual de Igualdade Racial e Combate à Intolerância Religiosa, que é um isntrumento, um marco legal que nós temos e que é de grande importância para coibir e punir essas manifestações. Então, a primeira dimensão é essa preventiva da educação e propagação do direito à liberdade religiosa, as várias formas de expressão com o sagrado”, aponta.

E a outra dimensão, a gente tem atuado no acompanhamento dessas denúncias de intolerância religiosa em todo o estado através do Centro, que é um equipamento público que, além de funcionar aqui na sede da Sepromi, desenvolve um trabalho itinerante e já percorreu diversos territórios com o objetivo de difundir o nosso estatuto, além do papel de acolher situações, casos, exemplos de violação dos direitos de quem é, sobretudo, pertencente às religiões de matriz africana. Nesse encontro do racismo com o desrespeito às várias formas de crença é que a gente vê que a maioria que é atingida são os adeptos da umbanda, do candomblé. São as pessoas que têm a sua fé vinculada às religiões de matriz africana”, completa.

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