Investigado pela PF influenciou redução de área de proteção ambiental em Araçuaí (MG)

29/09/2025

Fonte:https://www.brasildefato.com.br/2025/09/29/investigado-pela-pf-influenciou-reducao-de-area-de-protecao-ambiental-em-aracuai-mg/

Fernando Benício aprovou licenciamento no auge da disputa pela redução da APA Chapada do Lagoão

 

O recente afastamento de Fernando Benício de Oliveira Paula, membro do Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam) e presidente da influente ONG Zeladoria do Planeta, como um dos envolvidos na organização criminosa desvendada pela Operação Rejeito, da Polícia Federal, expôs um esquema bilionário de manipulação de licenciamentos fraudulentos e articulação de mudanças regulatórias para beneficiar mineradoras de ferro na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH).

Mas a atuação não se restringiu à RMBH e essa mesma dinâmica de fraude e conflito de interesses se estendeu do minério do ferro ao lítio, em Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha. Em setembro de 2024, após uma visita à Atlas Lítio, a convite da própria mineradora, Benício elogiou a empresa em plena reunião do Copam, antecipando seu voto favorável.

Enquanto diretor da Zeladoria do Planeta, ele contratou a empresa Arcos Verde para um estudo de redução da Área de Proteção Ambiental (APA) Chapada do Lagoão em parceria com o atual prefeito de Araçuaí, Tadeu Barbosa (PSD). Essa estratégia culminou na aprovação, em maio de 2025, de um Projeto de Lei para reduzir drasticamente a APA, sob urgência, facilitando a mineração do lítio na região.

A APA Chapada do Lagoão, situada no semiárido mineiro, criada pela Lei Orgânica do Município em 1990, foi regulamentada em 2007 por meio da Lei Municipal n° 089 de 19/12/2007.

A região já sentia a crescente pressão do lítio: em 2023, por exemplo, a aprovação de uma pesquisa para a Sigma Lithium na APA foi anulada pelo Ministério Público, que cobrou a consulta prévia às comunidades tradicionais.

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Foi nesse cenário de efervescência que Benício, com a Zeladoria do Planeta, intensificou sua atuação, e comunidades como a zona rural de Neves, por ele citada como favorável à mineração, passaram a mostrar divisão de opiniões.

O voto de Benício

Os registros do Copam confirmam o padrão de atuação do conselheiro Benício. Na 116ª Reunião da Câmara de Atividades Minerárias (CMI), ele detalhou sua visita à mineradora Atlas Lítio em Araçuaí.

“Visitando a comunidade mais próxima, que é a comunidade de Neves, uma sociedade muito simples, mas onde existe um envolvimento da comunidade, o que me deixou muito satisfeito, porque eu pude verificar realmente que a comunidade quer o empreendimento, anseia por ele, pela geração de emprego, pelos recursos que vai gerar, alimentação, enfim.”

Benício concluiu: “então, antecipo aos senhores o nosso voto pelo deferimento do processo.”

Apesar da defesa de Benício, o processo de licenciamento da Atlas Lítio enfrentou um breve revés, sendo inicialmente retirado de pauta. Contudo, em uma manobra que levou menos de um mês, a 117ª Reunião da CMI/Copam, em outubro de 2024, concedeu a licença por unanimidade, com o voto favorável do próprio conselheiro.

Segundo a engenheira florestal Daniela Caixeta Oliveira, esse caso demonstra como os “processos formais de licenciamento podem ser contornados por meio de lobby, pressão política e corrupção, resultando na negligência de impactos ambientais e sociais.”

Fragilidades técnicas

A complacência de Benício contrasta com as sérias fragilidades técnicas apontadas por renomados pesquisadores do Projeto LIQUIT, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e outras universidades, em uma nota técnica de abril de 2025.

O estudo sobre o Projeto Anitta da Atlas Lítio Brasil denunciou o licenciamento irregular e fragmentado, o impacto em áreas de alta importância biológica como a APA Chapada do Lagoão e a Mata Atlântica, desrespeito a comunidades tradicionais e subestimação de impactos hídricos.

Manobra política e judicial

Com a proposta de redução da APA em curso, materializada no relatório encomendado pela Zeladoria do Planeta, em franco conflito de interesses, o prefeito de Araçuaí encaminhou à Câmara Municipal, em fevereiro de 2025, um Projeto de Lei sob urgência para diminuir seus limites.

Nesse cenário de crescente disputa pelo lítio na região, Benício, com sua posição estratégica no Copam e à frente da Zeladoria do Planeta, intensificou sua atuação.

Em meados de fevereiro de 2025, durante a primeira audiência pública realizada em Araçuaí, impulsionada por protestos da população e de estudiosos ambientais, notou-se o apoio de grande parte dos moradores da zona rural de Neves à redução da APA — a mesma comunidade visitada anteriormente pelo conselheiro do Copam.

Uma fonte, em contato com a reportagem, que preferiu não se identificar por receios de represálias, citou como um articulador desta comunidade o ex-vereador Demário Vieira Batista.

Segundo ele, Batista – que na audiência pública também defendeu a redução da APA – teria interesses minerários e abordou muitos moradores que se reuniram enquanto conselho para votar se a Sigma poderia ou não fazer pesquisa na região. “Na entrada da reunião de conselho da APA, Demário chegou até mim e disse para votar sim, porque seria bom para todos da comunidade”.

Demário Vieira Batista é irmão de Adair Vieira Batista, que, conforme recibo eletrônico de protocolo  SEI Nº 48054.832166/2022-11, emitido pela Agência Nacional de Mineração (ANM), datado de 16 de janeiro de 2024, o solicitante Fúlvio Geraldo de Azevedo, agindo em nome de Adair Vieira Batista, protocolou comunicação de início de pesquisa mineral.

A reportagem teve acesso a um vídeo no qual o prefeito, em entrevista ao grupo Núcleo de Cidadania de Adolescentes de Araçuaí (NUCA), em março de 2025, detalhou a motivação por trás dessa iniciativa.

“O território dessa APA adentrou ao município de Caraí, trazendo para nós uma condição desfavorável na questão jurídica, porque um município não pode atuar em outro município. Há um acordo de cooperação com a empresa Zeladoria do Planeta e essa ONG contratou uma outra empresa chamada Arcos Verde e apresentou para a gente uma condição que seria a elevação da cota de 500 para 575”, afirma Tadeu, no vídeo.

O prefeito, por sua vez, negou categoricamente qualquer “interesse escuso”, defendendo a iniciativa como uma correção jurídica necessária para uma APA que, segundo ele, nunca teve sua proteção efetivada, carecendo de recursos e plano de manejo.

Na sequência dos debates e da crescente mobilização, na audiência pública realizada em Araçuaí em 10 de abril de 2025, o cenário de disputa se acirrou. O vereador Danilo Borges (PT) levantou suspeitas sobre o que chamou de “muita coincidência” no cronograma.

O trabalho de campo da Zeladoria do Planeta para a revisão da APA, entre 17 e 19 de setembro de 2024, ocorreu simultaneamente à notificação oficial enviada pelo ex-prefeito de Caraí ao prefeito de Araçuaí. Para o vereador, essa sincronia sugeriria “uma ação coordenada para pressionar a redução da APA”.

Na mesma audiência, o professor João Luís Jacinto apresentou mapas com dados da Agência Nacional de Mineração (ANM) revelando processos minerários, incluindo concessões de lavra da própria Atlas Lítio, dentro da APA Chapada do Lagoão, contradizendo as justificativas apresentadas e o relatório da Zeladoria do Planeta.

Diante das críticas contundentes e da forte oposição, em abril de 2025, foi registrada uma Ação Civil Pública (ACP) em Araçuaí, que culminou em uma decisão liminar suspendendo a tramitação do PL a pedido do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG). A Justiça apontou irregularidades graves, como a ausência de consulta às comunidades quilombolas e o impacto sobre nascentes e vegetação nativa.

Contrariando as recomendações do MPMG, a Câmara de Vereadores de Araçuaí aprovou o Projeto de Lei nº 02/2025 em 5 de maio de 2025.

Essa vitória legislativa da proposta de redução abriu caminho para que a Lei Municipal nº 726 fosse sancionada em 27 de maio de 2025, resultando em uma drástica redução de 55,6% da área original da APA.

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Enquanto o relatório da Arcos Verde havia sugerido uma redução de 5.584 hectares (passando a APA para 18.595 hectares), a aprovação final foi ainda maior: a área foi de 24.180 hectares para apenas 10.739,9252 hectares.

Em meio a essa complexa teia de interesses e pressões, a voz da Igreja, representada pelo bispo Dom Geraldo dos Reis Maia, ecoou na audiência defendendo a importância inquestionável da APA Chapada do Lagoão.

“Vejo-me obrigado a indagar se os senhores e senhoras estão confortáveis com o extremo calor da nossa cidade. Pergunto ainda se seus familiares, idosos e crianças já não se sentiram mal com a temperatura elevada em nossa região. É essa APA que tem refreado uma verdadeira calamidade climática. Sem ela seria bem pior do que é hoje. Assim, uma simples cogitação de reduzi-la contraria não só a lógica, mas a ciência, o bom senso e a responsabilidade social.”

O bispo ressalta a urgência da proteção ambiental, em um contexto em que as mudanças climáticas já são uma realidade palpável, como evidenciado pela própria Araçuaí ter registrado a maior temperatura do Brasil em 15 de novembro de 2023, atingindo 44,8°C.

 

O outro lado

A reportagem entrou em contato com Fernando Benício, Tadeu Barbosa, Demário Vieira Batista e a Zeladoria do Planeta para comentarem sobre as denúncias, mas não obteve respostas até a publicação desta matéria. O espaço segue aberto.

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