Esquecidos pelo poder público e pela mídia, mas não menos impactados pela pandemia. A solidão do trabalhador do campo é permeada por morte e descaso

Ascom/SDR

“Por mais que as medidas protetivas e notícias tivessem caído sobre o Campo como um novo tempo, a percepção mais sentida, ainda, foi a de exclusão do produtor rural”, afirmam pesquisadoras

covid-19 levou o Brasil à maior crise sanitária e hospitalar da história. Mais de 570 mil mortos, pessoas morrendo em casa sem atendimento médico, falta de apoio do Estado, inflação, insegurança alimentar, aumento da fome e da miséria. Enquanto a incerteza abate parte da população, a atenção do poder público e da imprensa se voltaram para as grande cidades, já que são grandes centros de disseminação do vírus. Por outro, os olhos parecem ter sido fechados para as consequências da pandemia no campo. Esta é a reflexão proposta pelas professoras do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) Sônia Inês Vendrame e Luzia Sigoli Fernandes Costa no artigo intitulado “Covid-19 fecha a fronteira da cidade para o campo: narrativa sobre a vida na roça esquecida pela mídia e governos durante a quarentena”.

Nenhuma medida econômica adotada pelos governos incluía o homem do campo. Uma adequação da mensagem, nesse caso, se fazia necessária”, afirmam as pesquisadoras sobre a percepção de abandono dos trabalhadores rurais .

A covid-19 impactou de diferentes formas o campo, onde, de forma geral, as vidas já são acostumadas com certo grau de isolamento, mostra o artigo das professores. Na televisão, especialistas reforçam a todo momento o uso de máscaras. No campo, parece fazer pouco sentido para quem passa seus dias a cultivar a terra. Idosos, pais e mães, cujos filhos partiram para as cidades, seja para estudos ou em busca de outras opções de trabalho, sentiram como poucos o peso do isolamento, forçado pela quarentena.

Isolados

“Até o anúncio do isolamento social, a distância era minimizada pelas visitas sem hora marcada (…) A covid-19 trouxe uma mensagem diária sobre a presença da morte. A tela, como se fosse colonizadora, anunciava: ‘Você, que tem mais de 60 anos e sofre de pressão alta, é cardíaco e tem doenças respiratórias, será o primeiro a morrer’. E profetizava: ‘Olha, entre você com 60 e você com mais de 80, a prioridade da máquina (que ninguém sabia dizer qual era) vai para o mais novo’”.

 

O descaso geral do poder público também causou grande de confusão entre as populações fora dos centros urbanos. Enquanto o medo é justificado pela gravidade da pandemia, as mensagens recebidas eram controversas. Isso porque o presidente Jair Bolsonaro adotou a lógica negacionista. “A dualidade aqui é entre a sabedoria médica – tão ausente nas comunidades rurais locais e, quando tida, respeitada com o rigor de quem crê que o médico sabe tudo – e o ditame da autoridade máxima. Bolsonaro, em rompantes delirantes, enfrentava a sabedoria da Ciência, e vociferava tentativas impróprias, até mesmo para quem não é presidente da República. O exemplo mais repugnante foi protagonizado ao reduzir a letalidade da bactéria e classificá-la como “gripezinha””.

Sem ajuda e apartados dos centros, a dúvida acerca da pandemia virou regra entre os do campo. “Encontrava-se, em jogo, à saúde do nonno (avô) e da nonna (avó), tão repetidamente alertada pela Organização Mundial da Saúde, mas também o emprego dos filhos, noras e netos palanqueados pelo presidente da República (…) Assim, de porteiras fechadas para o campo, a cidade, por vontade quase própria, foi abrindo o comércio lentamente. Se o supermercado pode, a mercearia também. Se o vizinho do lado abriu, abro também”. Assim, muitos filhos nas cidades grandes perderam, agora definitivamente, o contato com seus pais e avós, mortos pela peste.

Golpe duro

O fato é que a pandemia foi um golpe duro em toda a sociedade, urbana e do campo. Destruiu famílias, adiou sonhos, interrompeu vidas e trouxe uma avalanche de sensações negativas nunca antes experimentadas. Logo, é essencial incluir o sofrimento do trabalhador rural nas reflexões. “Outro aspecto a se considerar é como os próprios agricultores se sentem atualmente, como se estivessem do lado de fora do problema da pandemia. Os discursos midiáticos não os contemplam. Mas, ao mesmo tempo, eles se sentem pela nova dinâmica social que tão rapidamente se estabelecera”.

Para as pesquisadoras, essa inclusão deve ser enxergada para além de um exercício de austeridade entre os moradores dos grandes centros. Passa por um aprendizado sobre qual sociedade é idealizada em tempos menos austeros. “O mundo rural tem muito a ensinar sobre subsistência, resistência, solidariedade, cooperação entre vizinhos e familiares e estratégias de produção em pequenas escalas e estratégias de comercialização. E, assim, garantir o atendimento às necessidades do campo e da cidade”.

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