Filmando entre a água e a andorinha: uma conversa com Isael e Sueli Maxacali

 

Dar a ver pelo olho da objetiva. Isael e Sueli Maxakali vão à ontologia da captação da imagem mecânica para revelar seu mundo aos olhos cansados de nós, não-indígenas. Ao fazer um registro participativo de sua cultura, seus rituais, para, como dizem em entrevista, “mostrar o nosso conhecimento diferente para não-índio na escola”, o casal de cineastas revela parte do que não é visível no complexo modo de viver indígena, em sua relação integrada entre espiritualidade, natureza e sociedade. Vê quem pode e quem quer.

Um cinema de corpos inteiros e coletivos, quase sem decupagem, com luz natural e o distanciamento exato entre revelar e manter o mistério da existência. Uma câmera corpo que participa e nos insere nas encenações rituais Maxakalis sem romper o limite do sagrado. Talvez a camada que mantenha intacta a distância segura entre a câmera e os ritos seja a ludicidade com que estes são encenados e filmados. Sob o véu da brincadeira se esconde a fantasmagoria que organiza as práticas da comunidade, as relações sociais, a cultura. Imagem-movimento. Ali onde a câmera brinca ao lado de andorinhas-espíritos e em rituais de pesca com as mãos. Nunca ela foi tão bem tratada. O cinema agradece.

A seguir publicamos a entrevista realizada com Isael e Sueli Maxakali durante a 23ª Mostra de Tiradentes, na qual o longa-metragem Yãmĩyhex: as Mulheres-Espírito, dirigido pela dupla, venceu o prêmio Carlos Reichenbach de melhor filme da seção Olhos Livres, concedido pelo Júri Jovem.

Vocês fazem filmes na aldeia Maxakali há muito tempo. Como o cinema entrou na vida e no cotidiano da aldeia?

Isael Maxakali: Eu aprendi a filmar em 2000, mas eu aprendi com meu parente, né? Chama Divino Xavante [o cineasta Divino Tserewahú], eu aprendi com ele. Ele deu aula pra nós, Maxacalis. Oito pessoas estudaram com ele, pra aprender a filmar. Eu aprendi para filmar a nossa cultura dentro da aldeia, porque eu tenho vontade de mostrar a nossa cultura pro Brasil todo, fazer documentário pra escola não-índio, e pra escola indígena também. É um documentário, para mostrar o nosso conhecimento diferente pra não-índio na escola. Porque a escola imita a nossa cultura, mas pra nós isso não é bom. Precisamos mostrar a nossa cultura pra estudante não-índio, convidar a gente a ver, porque nós estamos vivos ainda, não precisa nos imitar, né? Imitar a cultura, cocar na cabeça… eu acho muito importante chamar estudante indígena pra fazer apresentação na escola não-índio. Fazer palestra. Eu acho muito importante pra mim também. Gostei muito de ver o meu filme, que tá circulando no Brasil todo, em festival, mas eu gostaria que convidassem nós, pra nós mostrar o nosso filme. Porque nós somos cineastas indígenas. Tem vários cineastas indígenas. Cada etnia tem muito filme: Guarani, Xavante, Krenak, Pataxós, tem muito cineasta indígena em todo lugar. Também sou coordenador da escola indígena de Maxakali, Aldeia Verde. Eu sempre faço filme pequeno pra estudante indígena dentro da aldeia mesmo.

Eu gosto de filmar, filmar, filmar, filmar, o nosso ritual, mas tem o permitido e o proibido, eu tenho que pedir autorização do Pajé. Se ele autorizar eu filmo, se não autorizar, não tem problema. Eu fiz treinamento pra filmar os nossos rituais. Não é qualquer pessoa que pode chegar lá e filmar. Tem que fazer treinamento com o Pajé, como é que filma, a distância também… e aí ele vai autorizar, e eu vou filmando, né? Nós não estamos resgatando a nossa cultura, porque a nossa cultura tá viva, nosso canto tá vivo, nossa língua, a comida também. E hoje nós estamos continuando a nossa cultura.

Eu conheci os filmes de vocês em uma mostra em Ouro Preto, há alguns anos. Nós estivemos em uma mesa juntos, e vocês falaram um pouco de como a câmera e o cinema passaram a integrar os rituais da aldeia. Isso é uma das coisas mais impressionantes do cinema de vocês: a câmera e quem filma não parece estar fazendo um registro de fora, mas participando mesmo dos rituais. Como é a integração do cinema com os rituais da aldeia? Qual o papel da câmera e da imagem nos rituais de vocês?

Isael: Pra mim, quando eu pego a câmera, eu passo pros movimentos dos rituais, da dança. E pra mim eu tô participando também, tô dançando, né? Aí eu vou correr, porque parece pra mim que eu não to filmando, eu tô dançando também, brincando, rindo, falando com o pessoal. Movimento, né? É assim. A gente esquece da câmera aí parece que tá no meio da brincadeira, né? Correndo, filmando, é assim.

Sueli Maxakali: É, é isso que Isael falou. Eu acho que a gente vai filmando e parece que a gente tá participando, né? Tem um momento que eu falo assim: “Ei, pega a madeira! Molha! Coloca água!”. Tem momentos que eu falo assim. Pra nós a gente tá participando, no meio com a câmera. Tem hora que eu esqueço a câmera, aí eu lembro que tô com a câmera. Também é importante que a gente pensa assim, porque tem um momento que a gente respeita o movimento das meninas. Porque na hora que estão molhando a gente não pode aproximar, porque a gente já perdeu uma câmera. A menina foi jogar água e caiu em cima da câmera, né? Isso a gente tem que lembrar, sempre lembrar, mas tem hora que a gente tá no meio participando também. É muito importante isso acontecer.

A tecnologia hoje que tá fazendo parte de nós, entendeu? É uma tecnologia que entrou dentro da aldeia e que não prejudica nós. Eu acho que essa tecnologia, ela fez o mundo conhecer como é a cultura de verdade do povo Maxakali. Porque pra nós, nós não gostamos de participar com tripé, entendeu? Por causa do movimento nosso, dos nossos rituais. Por isso que a gente não gosta de tripé. É na mão mesmo, que a gente ao mesmo tempo tá correndo e filmando. É importante.

Eu gosto muito desse movimento dos filmes de vocês. Uma câmera que está muito próxima do corpo, que nos coloca junto. Acho que nos transmite um conhecimento e um entendimento da cultura de vocês muito vivo, essa ideia de uma cultura viva mesmo.

Isael: Isso. No outro filme eu filmei o ritual andorinha. Aí eu filmei, filmei, e esqueci, e as mulheres jogaram água na andorinha e eu tava no meio filmando e esqueci. Não sei quem foi que jogou água na andorinha, a andorinha pulou, e a água caiu em cima da câmera filmadora. Mas eu fiquei alegre, fiquei rindo, e a filmadora não funcionando. Mas eu não fiquei nervoso. Aí eu levei a filmadora e falei pra Sueli: “ô Sueli, olha aqui a filmadora molhada…”. Mas eu não fiquei triste, falei rindo, né? A gente não usou nem um ano, só cinco meses, mas nós conseguimos duas filmadoras, quando estragou a outra. Mas eu fiquei esperto com a distância agora. Porque no primeiro eu tava no meio, parece que tava participando também, movimento, mas aí molhou a câmera e eu não fiquei chateado não, acontece, né? Aí eu conversei com a nossa equipe e eles falaram que é assim mesmo, que acontece, não tem problema, porque é o nosso ritual mesmo. É a nossa cultura, não pode reclamar. Porque eu gosto dos nossos rituais.

Sueli: E também o nosso Yãmĩ. Aqui nós perdemos uma filmadora, mas ele dá duas, três. Porque Yãmĩ é espírito, ele dá força, ele quer ver se a gente fica chateado, mas a gente crê que nós vamos ganhar, isso é importante pra nós. E agora nós temos duas câmeras, uma grande e uma pequena. Teve um momento [no filme Yãmĩyhex: as Mulheres-Espírito], eu acho que eu tirei essa parte, uma menina que eu vou correndo atrás, no momento que ela vai jogar água, eu falei: “Não joga água!”, mas nós cortamos porque era muito grande a filmagem e nós cortamos. Mas tem um momento que eu peço pra ela não jogar água, né? A gente tem que ter essa experiência também. Saber aonde vai jogar, de que lado a água vai. Porque quando ele rebate a água, a água volta, porque eles estão com a máscara, aí eles batem e água volta e cai em cima da câmera.

Então, você falou sobre o corte. Vocês participam de alguma forma da montagem dos filmes [assinada por Luisa Lanna com colaboração de Carolina Canguçu e Roberto Romero]? Opinam sobre a duração das imagens, qual imagem vem depois da outra?

Sueli: Sim, participamos. Mas tem muita coisa que a gente vai tirando, vai tirando, vai tirando. Tem um momento que é importante a gente falar: “essa parte vai ficar, essa parte vai tirar”. Aí quando a gente vai montar, mesmo assim fica grande, porque são muitas horas, muito tempo.

Isael: Mas também se tem algum problema que a gente não gostou, aí é difícil tirar também. Porque se eu tiro filme demais, que eu não gostei… não tem como tirar mais. Se tirar, eu parto um pedaço pra ficar bonito, e a gente acerta, mas aí não tem como tirar mais também, porque tem o corte, o espaço.

Vocês gostam de deixar os planos mais longos ou vocês gostam de cortar.

Sueli: É por causa da regra, ela vem na regra. Aí a gente vai tirando as partes e vai deixando pela ordem, tem que ser na ordem do ritual. A gente vai tirando uns pedaços e deixando uns pedaços pra ir mostrando os momentos que vão acontecer naquela hora.

Isael: A gente tira no plano, né? A gente só coloca quando começa rápido, o movimento.

E qual é o envolvimento da aldeia? Vocês fazem exibições dos filmes lá? São os mesmos filmes que vocês exibem em festivais ou tem filmes que são só exibidos na aldeia e outros que vão pra fora?

Sueli: É exibido sim. Só quando aparece… vou dar um exemplo: se morrer algum pajé no meio da filmagem, esse pajé morreu, aí nós vamos respeitar, não pode passar dentro da aldeia. Porque se passar tem gente que vai chorar, vai ficar triste, entendeu? A gente respeita o momento, a gente deixa passar esse momento. Aí quando passou dois anos, três anos, aí pode passar. Três anos pode passar.

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