Para Krenak, a pandemia do coronavírus mostra que não há fronteiras entre o corpo humano e os organismos que o rodeiam

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Covid não veio para ensinar, mas para matar, afirma Ailton Krenak

Foto: Alinne Tuffengdjian/Globo

A última mesa da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, de 2021, “Cartografias para Adiar o Fim do Mundo”, fechou o evento com uma mensagem de esperança como contraponto à crítica atroz ao capitalismo –ou o chamado “capitaloceno”, conceito a partir do qual a ação humana se manifesta sempre como resultado de relações econômicas de poder e desigualdade em um contexto global.

A “caretice ocidental” de certos intelectuais que buscam uma cadeira em lugares “abstratos” foi o ponto de partida para o debate entre o líder indígena, filósofo e escritor Ailton Krenak, 68 anos, e o sociólogo e tradutor Muniz Sodré, 79 anos.

“Os humanos estão encenando uma humilhante condição de consumir a terra. Estamos perdendo a mágica que nos faz seres transcendentes. Entristecer o mundo parece que é a vontade do capital. O capitalismo quer fazer um mundo triste, em que operamos como se fôssemos robôs. Por que nossos peixes têm de carregar microplásticos em suas estruturas?”, questionou Krenak, autor de “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, de 2019, e “A Vida Não É Útil”, de 2020.

A ideia de resistência a esse povo europeu que pensa seu modo de existir como único, segundo Sodré, estaria impregnada nas cartografias afetivas que dão nome à mesa –elas foram criadas a partir de oficinas promovidas pela Flip com povos indígenas para mapear futuros possíveis para o Brasil.

“Essas cartografias se realizam como uma nova forma de pensar. São instrumentos de uma política de agregação humana. O debate é muito necessário nesse momento de falta de esperança, de desinteresse”, afirmou o autor de “Pensar Nagô”, de 2017, e “A Sociedade Incivil”, de 2021. Sodré evocou ainda o poeta Caio Fernando Abreu (1948-1996) para tratar da importância da discussão: “O impossível não é não dizer, mas não sentir”.

Krenak foi além e afirmou que é necessário se rebelar contra a “metástase do que se chama de capitalismo” e que uma das soluções contra isso estaria justamente na prática do que ambos chamaram de “cartografias afetivas” produzidas pelas oficinas.

“Só a força dos ancestrais é que possibilita imaginar essas cartografias, que contêm camadas de mundo onde as narrativas não precisam conflitar umas com as outras. Não podemos nos render a essa narrativa do fim do mundo, que nos faz desistir dos sonhos, que estão na memória dos nossos ancestrais. Minha visão de cartografia é aquela visão fantástica do astronauta olhando para a Terra e dizendo que a Terra é azul.”

“Sempre observei a cidade como um muro. É comum as prefeituras ficarem zangadas com árvores que arrebentam as calçadas. Eu gostaria de conclamar todas as árvores a quebrar mesmo as calçadas da cidade”, provocou o líder indígena.

Para Krenak, a pandemia do coronavírus mostra que não há fronteiras entre o corpo humano e os organismos que o rodeiam. “Se o vírus fosse pior que o humano, a gente teria desaparecido. A epidemia não vem para ensinar, mas para matar. Não sei de onde vem essa mentalidade branca de que o sofrimento ensina alguma coisa.”

Sodré, por fim, argumentou que o vírus é um efeito colateral da colonização da Terra. “A cidade é importante, mas é preciso ver um outro modo de inteligência, a inteligência da floresta. As lições a se tirar vêm da natureza, vem da mata.”

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