Como pesquisar para transformar?

14/08/2018

Por Gilvander Moreira[1]

Fonte:http://gilvander.org.br/site/como-pesquisar-para-transformar/

Casa da Saúde no Acampamento Maria da Conceição, do MST, em Itatiaiuçu, MG, dia 13/01/2018. Foto: G. L. Moreira.

Ao fazer retrospectiva sobre a evolução da metodologia de pesquisa, Marcela Gajardo define a Pesquisa Participante como apropriação coletiva do saber, na produção coletiva do conhecimento, algo indispensável na luta por efetivação de direitos dos grupos explorados. Parte-se do princípio de que os grupos injustiçados em luta por direitos são sujeitos políticos. Assim, na década de 1960 se evolui da pesquisa temática para a pesquisa-ação. Buscam-se estratégias metodológicas que viabilizem a superação de dicotomias, tais como: sujeito-objeto, teoria-prática, “possibilitando uma produção coletiva de conhecimentos em torno de vivências, interesses e necessidades dos grupos situados histórica e socialmente” (GAJARDO, 1987, p. 18).

Em contexto de crise dos sistemas teóricos, crise nas Ciências Sociais, inclusive, emerge a Pesquisa Participante como uma proposta metodológica emancipatória. “As primeiras experiências sociais de vocação participativa surgem em um tempo histórico em que se renovam e se multiplicam sistemas teóricos de crítica do presente, associados a uma não rara esperançosa proposta de construção social do futuro” (BRANDÃO; STRECK, 2006, p. 25).

A partir dos anos 70 do século XX, vindo de uma vertente mais sociológica do que propriamente pedagógica, o conceito de pesquisa-ação passa a ser utilizado “para caracterizar os estilos participacionistas de pesquisa” (GAJARDO, 1987, p. 23), embora Paulo Freire seja considerado o criador desse enfoque metodológico. Iniciador da pesquisa participante na América Latina, Orlando Fals Borda – pesquisador, historiador e sociólogo colombiano da Sociologia da Libertação -, um dos criadores da Investigação-ação participativa, afirma a vinculação da pesquisa com as ações sociais e políticas desenvolvidas pelos grupos oprimidos e conscientes. Em entrevista, Orlando Borda faz memória do nascedouro da pesquisa participante. Diz ele: “Foi em 1970, em protesto pela rotina acadêmica e a falta de apoio a aquilo que nós pensávamos que devia ser investigado e transformado, porque o interessante aí foi a ênfase na ação; investigar para transformar,  esse foi nosso esquema. Investigar para quê? Bem, para transformar. Por quê? Porque há injustiça, há exploração e o mundo tem de ser mais satisfatório” (BORDA, 1981, p. 78).

Orlando Borda sustentava, na década de 1970, “um conceito de ciência que distinguia (e ainda distingue) entre ciência popular e ciência dominante. Esta última, definida como uma atividade que privilegia a manutenção do sistema vigente, capitalista e dependente” (GAJARDO, 1987, p. 23). Por outro lado, a ciência popular é definida como o “conhecimento empírico, prático, de senso comum que tem sido um bem cultural e ideológico ancestral das camadas da base social, o qual lhes permitiu criar, trabalhar e interpretar a realidade predominantemente por meio de recursos que a natureza oferece ao homem” (BORDA, 1981, p. 152). Com Orlando Fals Borda afirmamos que toda ciência e todo trabalho científico têm uma conotação de classe, mesmo que seja negada pelo/pela pesquisador/a. Além disso, o conhecimento para transformação social não se radica apenas na formação de uma consciência emancipatória, mas na prática dos grupos oprimidos, pois é com prática, atuação concreta, que se podem alterar as condições materiais históricas.

Ainda em 1977, em uma reunião internacional sobre pesquisa participante convocada pelo Consejo Internacional de Educación de Adultos, restou definido: “A pesquisa participante é um enfoque de investigação social por meio do qual se busca a plena participação da comunidade na análise de sua própria realidade com o objetivo de promover a participação social para o benefício dos participantes da investigação. Esses participantes são os oprimidos, os marginalizados, os explorados. Trata-se, portanto, de uma atividade educativa, de investigação e ação social” (GIANOTTEN; WIT, 1987, p. 169).

Na década de 1980, houve a formatação do instrumento de pesquisa participante. Esta “surge, conceitual e metodologicamente, no início da década de 1980, quando a realidade de um número importante de sociedades latino-americanas se caracteriza pela presença de regimes autoritários e modelos de desenvolvimento manifestamente excludentes, no aspecto político, e concentradores, no aspecto econômico” (GAJARDO, 1987, p. 39).

“A pesquisa participante procura auxiliar a população envolvida a identificar por si mesma os seus problemas, a realizar a análise crítica destes e a buscar as soluções adequadas” (LE BOTERF, 1987, p. 52). Fazer pesquisa participante e chegar a um bom termo é um desafio, pois “exige do pesquisador uma postura muito aberta em relação à investigação, uma grande capacidade de se “descentrar” para “se colocar no lugar do outro”, do interlocutor” (LE BOTERF, 1987, p. 58). A pesquisa participante pode ser instrumento de pesquisa em inúmeras modalidades e com muitas características. “Uma das principais características da pesquisa participante é que ela parte dos problemas colocados pelos pesquisados, problemas que eles estão dispostos a estudar. Ela parte do mundo cotidiano do povo e escuta sua voz. Importa igualmente compreender a história vivida, revelada pela memória individual e coletiva: quais são os conflitos, as desconfianças, as alianças e as lutas pela terra?” (LE BOTERF, 1987, p. 57-58).

Realizar pesquisa participativa exige “viver junto” com a coletividade estudada, partilhar o seu cotidiano, o seu uso do tempo e do espaço: “Ouvir, em vez de tomar notas ou fazer registros; ver e observar, em vez de filmar; sentir, tocar em vez de estudar; “viver junto” em vez de visitar” (LE BOTERF, 1987, p. 58). Sem uma relação de confiança entre pesquisados e pesquisador não é possível se fazer pesquisa participante. E confiança se conquista, não se pede ajoelhado e nem se impõe de dedo em riste. O grupo pesquisado ativo precisa sentir que o pesquisador é “um dos nossos”. Enfim, pesquisar para transformar exige libertar-se das metodologias acadêmicas tradicionais, considerar os grupos oprimidos pesquisados como sujeitos construtores de conhecimentos emancipatórios, conviver com os grupos subalternizados e construir conhecimento de forma coletiva superando a hierarquia que muitos estabelecem entre conhecimento científico e conhecimento popular.

Referências.

BORDA, Orlando Fals. La ciencia y el pueblo. Nuevas reflexiones sobre la investigación-acción. In: La Sociología en Colombia, Bogotá, Asociación Colombiana de Sociología, III Congreso Nacional de Sociología, p. 149-174, 1981.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues; STRECK, Danilo R. (Org.). Pesquisa participante: o saber da partilha. 2ª edição. Aparecida/SP: Ideias & Letras, 2006.

GAJARDO, Marcela. Pesquisa participante: propostas e projetos. In: BRANDÃO, Carlos Rodrigues (Org.). Repensando a pesquisa participante. 3ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1987.

GIANOTTEN, Vera; WIT, Ton de. Pesquisa participante em um contexto de economia camponesa. In: BRANDÃO, Carlos Rodrigues (Org.). Repensando a pesquisa participante. 3ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1987.

LE BOTERF, Guy. Pesquisa participante: propostas e reflexões metodológicas. In: BRANDÃO, Carlos Rodrigues (Org.). Repensando a pesquisa participante. 3ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1987.

Belo Horizonte, MG, 14/8/2018.

Obs.: Os vídeos, abaixo, ilustram o texto, acima.

1 – Nazaré – Câncer na Família e agrotóxicos em Unaí: 20ª Romaria das Águas e da Terra/MG. 20/7/2017.

2 – Padre Piggi mostra grilagem de terras na região da Izidora, em Belo Horizonte, MG. 10/07/2015.

3 – Klemens, prof. Dr./IGC/UFMG, critica a especulação imobiliária e defende a luta das ocupações.

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.

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