Artes e Ofícios dos Saberes Tradicionais – UFMG

19/01/2014

O Departamento de Comunicação Social da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) da UFMG convida os alunos para a disciplina Artes e Ofícios dos Saberes Tradicionais ( código Com 351 – Laboratório de Conteúdo Variável).

A disciplina  será ministrada às terças e quintas do primeiro semestre de 2014, de 14:00 as 18:00.

Artes e Ofícios dos Saberes Tradicionais pretende realizar uma experimentação pedagógica e epistêmica na UFMG por meio de estudos teóricos e práticos de saberes de matrizes indígenas e afro-descendentes,  tomando esses saberes tradicionais – pouco correntes ou mesmo excluídos da universidade – a partir do seu entendimento e da  sua transmissão pelos próprios mestres.

 

O objetivo da disciplina é introduzir na Universidade o contato com outras lógicas cognitivas baseadas em conhecimentos não-escolares e não-eurocêntricos (mas gerados conforme outras modalidades de produção, transmissão e transformação). Para tanto, propõe-se um diálogo simétrico com os saberes de matrizes indígenas e afrodescendentes e com a produção do conhecimento científico e artístico em diversas áreas de conhecimento deles decorrentes.

Essa proposta foi iniciada na UNB por iniciativa do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa (INCTI), que faz parte do programa de Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), sediado na Universidade de Brasília. O INCTI representa, no plano histórico da pesquisa em Ciências Sociais e Humanidades no Brasil, a consolidação de uma rede de pesquisadores que vem realizando pesquisas e produzindo conhecimento sobre as políticas de ações afirmativas nas universidades brasileiras.

A disciplina será desenvolvida em 5 módulos ministrados por mestres indígenas, afrobrasileiros e ribeirinhos em parceria com professores da Escola de Belas Artes, Escola de Música,  Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Faculdade da Ciência da Informação e  Faculdade de Educação, enfocando conhecimentos, métodos, técnicas e formas de expressão diversas.

 

Módulo 1

Cultura e cultivos do quilombo

Mestres Badu e Tiana.

Professor Parceiro Rubens Alves da Silva (Ciência da Informação)

 

Cultura e cultivos do quilombo será ministrado pela mestre Tiana (Sebastiana) do quilombo Carrapatos da Tabatinga (Bom Despacho, MG) e pelo mestre Badu (Sílvio de Siqueira) do quilombo Mato do Tição (Jaboticatubas, MG). A partir de um breve percurso por suas histórias de vida – que se sobrepõem às histórias das suas comunidades –  os mestres abordarão conhecimentos específicos  ligados à história afrobrasileira e a noções de corpo, saúde, cura e doença, natureza e cultura. As aulas acontecerão por meio de narrações, cantos e danças pelos quais os saberes dos mestres  pode ser transmitido e transformado. As histórias nos contextos afrodescendentes são uma forma privilegiada de produzir conhecimentos e transmiti-los sempre por meio da interação.

Tiana tem 82 anos e é mestre de Moçambique (uma das modalidades de grupos religiosos devotos de Nossa Senhora do Rosário componentes do reinado em MG), chefe de umbanda, curadora com cantos, danças e com uso de folhas e raízes ancestrais. Mobiliza o movimento quilombola de Minas Gerais há mais de vinte anos. Sua luta junto à organização das comunidades quilombolas de Minas Gerais e junto à CONAQ (Coordenação Nacional Quilombola) é uma continuação ampliada da resistência da sua própria comunidade, Carrapatos da Tabatinga. O quilombo traz esse nome ligado à resistência dos quilombolas à sucessivas investidas genocidas de fazendeiros latifundiários. Esses fazendeiros se aborreciam com a misteriosa capacidade que os negros tinham de reaparecer, tempos depois de violentos ataques ao seu território, “igual carrapatos que a gente tenta matar mas não morrem”. O nome “Carrapato” é portanto ligado à percepção de seus algozes de que, por mais que investissem contra esse povo – durante guerras em que a maioria dos homens iam sendo dizimados, mas mulheres e crianças se escondiam em buracos cavados no chão de terra -, eles não eram exterminados completamente e permaneciam unidos. O Quilombo Carrapatos da Tabatinga  conta com cerca de oitenta (80) famílias. Atualmente é um bairro da área urbana de Bom Despacho (porque a cidade avançou sobre a área rural). Essa comunidade é marcada pela atuação de um grupo de mulheres, lideranças política e religiosa do quilombo. Tiana é mãe de Sandra Maria atual presidente da Ngolo (Federação Quilombola de MG), também  atuante no Moçambique, junto de sua mãe. Essas mulheres guerreiam contra o agronegócio, o latifúndio, a concentração fundiária exercendo, sobretudo com o canto, seus atos guerreiros de mobilização e denúncia contra a injustiça racial. No filme documentário Raça de Joel Zito, há uma cena marcante em que Sebastiana milita e exige de funcionários da Câmara que permitam sua entrada para que ela cante para os deputados. O canto é uma das suas principais formas de expressão.

Badu, 79 anos, é mestre candombeiro do Reinado de Nossa Senhora do Rosário, artesão de múltiplas habilidades, folião reiseiro e agricultor. É um dos filhos do casal Benjamin e Josefa cuja união fundou a família que predominou no Quilombo Matição(Mato do Tição). Essa família constitui o atual coletivo Matição que conta com 132 pessoas, todos parentes. Os quilombolas enfatizam o parentesco (a família), a herança de uma terra, a descendência de escravos africanos, afrobrasileiros e indígenas, a fé, a tradição de muitas festas e o conhecimento da cura como aspectos mais importantes  que fazem a comunidade em  Matição. Nesse sentido, Badu é um dos anciãos que atualiza de forma  extraordinária saberes ligados à cura (sob uma concepção de corpo, saúde e doença que se relaciona com a benzeção,  banhos e chás a base de folhas e raízes, e os passes mediúnicos como principais procedimentos para a cura); à agricultura; às rezas e festas, cantos e danças. Os atuais anciãos são 6 irmãos da família Siqueira: dois irmãos mais velhos de Badu, Divina de 83 anos e Dante de 90, e uma irmã gêmea, Bina;  Isaura e Nilse, irmãs mais jovens). Badu é um excelente narrador. Os anciãos falam de exploração e de trabalho, de brincadeiras de roda, de batuque, de rezas e festas; de deslocamentos – espontâneos ou forçados –, de acesso e de perda de terras, de casamentos, de fumo e cachaça, folhas, nascimentos, fome, fumaça; de tambores ancestrais. Além de tudo, esse mestre quilombola capturou um aprendizado extraordinário que associa radiestesia[1]com homeopatia e agricultura familiar, criando um enredo surpreendente no qual, recém mestre terapeuta da agricultura pela Universidade Federal de Viçosa, ele se reaproxima da mediunidade e se percebe voltando-se radicalmente, mas com uma forma nova, para os ensinamentos ancestrais do pai Benjamin, fundador da comunidade.

Matição é representada na literatura existente como uma comunidade marcadamente religiosa. É destacada em várias publicações (de artigos em jornais a livros sobre folclore) como uma ‘relíquia do sagrado’. Essa representação enfoca principalmente a excepcionalidade do candombe e das principais rezas e festas da comunidade. Durante o São João, realizam o antigo ritual de passar nas brasas da fogueira desmanchada no terreiro da casa de Divina. Devotos caminham sem se queimar demonstrando o “poder da fé” (ritual que já foi bastante comum em muitas localidades rurais de Minas Gerais, e que tem, progressivamente, se extinguido, sendo ainda muito praticado no Matição) Esse acontecimento extraordinário já foi fartamente documentado em fotos e vídeos por gente com motivações de toda sorte, para TV ou em registros da Secretaria Municipal de Cultura de Jaboticatubas.

 

 

Módulo 2

A Dinâmica das Manivas do Médio Solimões

Mestras Dona Maria Eugênia e Dona Margarida

Professora Parceira Deborah Lima (Antropologia)

Neste módulo, duas mestras do cultivo de manivas virão de uma comunidade amazônica para apresentar a sua sabedoria agrícola. As aulas abordarão a diversidade agronômica das manivas, com foco na diferença entre manivas  fortes e manivas fracas. As mestras discorrerão sobre as coleções de manivas  dos antigos e as variedades novas, mostrando a dinâmica das coleções. A disciplina também abordará as fases  e os ciclos do cultivo das roças, e o processamento da mandioca em farinha, goma, tapioca e tucupi. Rituais dos antigos, outros cultivos das roças, e percepções sobre a situação atual da agricultura serão também tratados.

 

 

Módulo 3

A cosmociência Guarani Kaiowa

Mestre Valdomiro Flores.

Assistentes: Valmir Cabreira e Genito Gomes

Professora parceira Luciana de Oliveira (Comunicação)

 Os guarani kaiowa, maior contingente de povo originário fora da Amazônia, somam hoje cerca de 50.000 pessoas. Vivendo em territórios altamente conflitivos em sua luta justa pela demarcação de terras, eles têm convivido com um entorno que ameaça a sobrevivência de suas práticas culturais – assassinatos de suas lideranças políticas, espirituais e intelectuais, preconceito, estigma, fome, desesperança, trabalho semi-escravo, condições insalubres de vida advindas da monocultura de cana, soja, milho, eucalipto para as empresas multinacionais do agronegócio. Não obstante, ainda há muitos anciãos que guardam conhecimentos acerca da filosofia guarani, da história não oficial do Brasil, conhecimento de plantas medicinais e procedimentos de cura, domínio de técnicas artísticas e rituais, gramática e expressão da língua guarani kaiowa. Segundo as palavras dos próprios guarani é a prática do conhecimento dos seus intelectuais, estas suas figuras eminentes que vimos traduzindo como “rezadores”, que sustenta e viabiliza a vida destes povos na terra. Estes especialistas, intelectuais que assumem funções centrais nestas sociedades, são, a um só tempo, grandes filósofos, historiadores, curadores e mantenedores do equilíbrio social, cosmológico e ambiental dentro de seus grupos. Esses serão os aspectos-chave enfocados e vivenciados neste módulo

 

 

Módulo 4

Cantos afro brasileiros: brincando e resistindo na tradição

Mestres Comunidade dos Arturos

Professora Parceira Glaura Lucas (Música)

A partir de concepções compartilhadas por membros da Comunidade dos Arturos, de que o canto é um universo imenso, e de que os efeitos de sua experiência se conectam a uma atitude de ‘pôr sentido’ nas intenções performáticas, esse módulo pretende propiciar aos participantes o contato com cantos e danças que conduzem as tradições vividas pelo grupo, como o João do Mato (festa de capina), a Folia de Reis, o Batuque e as rodas, e a religiosidade do Reinado de Nossa Senhora do Rosário. Pretende-se que a vivência prática, somada à reflexão sobre os conceitos, as motivações e as formas de ser dessas tradições culturais, crie um ambiente de partilha de experiências, aproximando os participantes do modo como os Arturos se reconhecem e se reconstroem no mundo pela via do canto e da dança.

 

 

 

Módulo 5

 Territórios do barro

Mestres Ceramistas Xacriabá Dalzira e Manuel

Professores Parceiros Ana Gomes (FAE), Cristiano Bickel (EBA) e João Cristeli (EBA)

O módulo territórios do barro evidencia os elementos terra, corpo e espaço na conexão aos saberes da cultura Xacriabá. Esse módulo abordará a materialidade do barro e os processos artísticos e socioculturais da produção da cerâmica xacriabá, relacionando-os à construção social da identidade e do território. A partir do contato com os mestres indígenas pretende-se o compartilhamento de vivências e experiências em um campo ampliado de relações que envolve práticas tradicionais, através da criação plástica com argilas e queimas à céu aberto de cerâmica; bem como, desdobramentos contemporâneas no território da UFMG, por meio de ocupações artísticas nos arredores da EBA e FAE.

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