“América do Sul tem 420 línguas ameaçadas de extinção”, diz linguista da UFMG

Professor Fábio Bonfim, coordenador do Laboratório de Línguas Indígenas da UFMG, na terra Arariboia, no Maranhão. Foto: Arquivo Pessoal | Foto: Arquivo Pessoal

 

 

Quando falamos de massacre dos indígenas, em diferentes frentes e ao longo de séculos, também podemos incluir nesse contexto a língua dos nossos povos originários. Uma das principais ameaças é a invasão de territórios, na avaliação do professor Fábio Bonfim, linguista e coordenador do  Laboratório de Línguas Indígenas da Universidade Federal de Minas Gerais (LaLi – UFMG)

 

Atualmente, são 180 línguas indígenas faladas no Brasil. Elas representam 15% das mais de mil que havia por aqui nos anos de 1500, segundo o professor. Ele lembra que políticas de preservação e registro da língua são importantes, mas não adiantam nada se os povos não têm o direito ao território, se são expulsos de suas terras. Situações que sempre ocorreram no Brasil, desde o início da colonização.

“Hoje, a América do Sul tem cerca de 500 línguas autóctones (naturais do país ou da região), sendo 420 seriamente ameaçadas de extinção, de acordo com o Atlas Mundial da Unesco das Línguas em Perigo”, diz Bonfim. O Brasil é o país com maior variedade linguística da região, mas, ao mesmo tempo, é o onde há mais perigo de extinção.

 

“Todas as civilizações que perderam a sua língua materna ficaram órfãs do conhecimento ancestral de seus antepassados”

Sim. Uma das principais ameaças às línguas indígenas hoje é a invasão dos territórios. Políticas de preservação e registro da língua são importantes, mas não adiantam nada se os povos não têm o direito ao território, se são expulsos de suas terras. Essa é a situação que ocorre desde o início da colonização. O caso dos índios Yanomami não é o único, mas faz parte do genocídio, desde sempre, contra os povos originários que vivem nas Américas. Há muitos outros exemplos, como a situação dos índios Krenak e Maxacali, que viviam ao longo dos rios Mucuri e Jequitinhonha, respectivamente nos séculos XVIII e XIX.

Em 1500, quantas línguas e dialetos havia por aqui? E hoje?

Estimativas indicam que havia entre 1.100 a 1.500 línguas antes da colonização portuguesa. Elas foram desaparecendo ao longo dos séculos. A extinção drástica de cerca de mil línguas em 500 anos não se deu apenas durante o período colonial, mas se manteve durante o período imperial e vem se mantendo até os dias atuais. Há, na América do Sul, cerca de 500 línguas autóctones, sendo que 420 estão seriamente ameaçadas de extinção, de acordo com o Atlas Mundial da Unesco das Línguas em Perigo. O Brasil é o país com maior variedade linguística da região, mas ao mesmo tempo é o que tem mais línguas em perigo de extinção. As 180 línguas indígenas faladas no Brasil são apenas 15% das mais de mil línguas que havia em 1500.

 

Até que ponto essa redução é natural em relação ao que acontece com as civilizações com o passar do tempo?

A redução das línguas indígenas não é algo natural e não deveria ocorrer, pois a morte de uma língua não é apenas uma questão de comunicação no dia a dia. A preservação da cultura de um povo depende da preservação do seu idioma e de seu território originário. Os dois estão intimamente interligados. Se a língua se perde, se perdem os conhecimentos tradicionais sobre a medicina, a culinária, as histórias, a cosmologia e os rituais. No idioma, está a questão da identidade e do conhecimento do bosque, do mato e dos bichos. Todas as línguas estão intimamente interligadas com a cultura de seus falantes e, portanto, essas línguas e culturas representam expressões específicas do pensamento humano e da organização social de uma determinada etnia. Assim sendo, com cada língua que desaparece, são valores intelectuais inestimáveis de uma determinada cultura que se perdem para sempre. Todas as civilizações que perderam a sua língua materna ficaram órfãs do conhecimento ancestral de seus antepassados.

 

Quando falamos de língua indígena, estamos nos referindo à língua oral somente ou há outro tipo de linguagem?

Os povos ameríndios possuem uma tradição oral. Isso significa que repassam os seus conhecimentos às novas gerações por meio da oralidade. São línguas de tradição essencialmente oral. As línguas são transmitidas pelos mais velhos a partir de narrativas orais. Linguistas auxiliam dotando os povos indígenas de uma ortografia, que é criada e adotada pelas comunidades para a produção e publicação de livros e de material escolar nas aldeias. É bom lembrar que esses povos não possuem bens culturais como livros, bibliotecas e livrarias. Só recentemente que essas línguas vêm sendo documentadas e, assim, muitas escolas indígenas vêm criando bibliotecas próprias. Considero que nós, linguistas, temos o papel de promover as línguas e de contribuir para a formação de linguistas indígenas para que eles mesmos executem o trabalho de descrição e revitalização das línguas nativas nas aldeias.

 

Você trabalha com Guajajara?

Eu, pessoalmente, trabalho com o Guajajara, que é a língua da etnia da nossa ministra dos Povos Indígenas (Sonia Guajajara). Por meio da ortografia Guajajara que adotamos, foi possível elaborar cerca de sete livros na língua. Há estruturas linguísticas muito curiosas: presença de categorias evidenciais, ordem VSO (verbo, sujeito e objeto), por exemplo. Além disso, a distinção entre as classes de verbos, adjetivos e nomes não é muito clara. Há um rico sistema de hierarquia de pessoas, entre outros pontos gramaticais.

 

Sobre os Yanomami, eles têm algo específico sobre a linguagem, em relação a outras etnias?

Uma questão muito curiosa sobre esse povo é que falam cinco ou seis línguas, que constituem uma pequena família linguística. Trata-se de uma família isolada, que não apresenta nenhuma semelhança com a língua falada, seja na Amazônia ou fora dela. Ou seja, trata-se de um povo que fala línguas, cujo funcionamento gramatical não apresenta parentesco com nenhuma outra língua falada nas Américas.

 

Recentemente, você lançou um livro sobre a sintaxe das línguas indígenas brasileiras. Como foi a pesquisa e o que foi mais interessante descobrir?

A publicação desse livro (“Ergatividade e Sistemas de Alinhamento em Línguas Indígenas, editora Mercado de Letras”) se insere no contexto de risco de perda de diversidade linguística no Brasil e em várias partes do mundo. Por essa razão, o lançamento do livro se alinha ao chamado que vem sendo feito pela comunidade científica em relação à urgente necessidade de pesquisas voltadas às línguas minoritárias, em especial para as línguas indígenas brasileiras, uma vez que mais da metade dessas línguas ainda precisam de descrições gramaticais mais detalhadas. O livro atende ao chamado da comunidade científica nacional e internacional, para que a gramática das línguas ameríndias seja documentada e promovida. É uma obra que apresenta uma descrição do Sistema de Caso em línguas do tronco tupi, do tronco macro-Jê e da família Karib. Há vários fatos interessantes, como, por exemplo, o funcionamento do sistema ergativo (aquele que identifica o sujeito de um verbo transitivo), fenômeno que é muito recorrente nas línguas da Amazônia e que não aparece nas línguas faladas na Europa e na maior parte das línguas do mundo. Trata-se, portanto, de um fenômeno gramatical essencialmente amazônico.

 

Você coordena o Laboratório de Línguas Indígenas da UFMG. Essencialmente, o que é mais importante nesse trabalho?

Nossa atividade principal é contribuir para promover a diversidade linguística no Brasil. É importante salientar que são reconhecidas no Brasil cerca de 42 famílias linguísticas genéticas, 10 das quais constituem o tronco Tupí e 12 outras integram o tronco Macro-Jê. Para tal, interessa-nos impulsionar ações de documentação, descrição e revitalização dessas línguas. Temos como meta desenvolver workshops nas aldeias para o trabalho com as línguas nativas. Por isso, venho formando alunos de bacharelado, de mestrado e de doutorado, no intuito de estimular a formação de recursos humanos para o trabalho com essas línguas. A demanda por cursos e workshops nas aldeias é enorme por parte dos povos indígenas. Por isso, faz-se cada vez mais necessária a formação de novos linguistas (indígenas e não indígenas) para o trabalho com as línguas. Eu, pessoalmente, vou frequentemente às aldeias para promoção de cursos de linguística Guajajara. (Com Gabriel Ronan)

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