‘A gente sabe que ela tem outros interesses lá’, diz moradora retirada de casa em Barão de Cocais sobre a Vale

01/07/2021

Fonte:https://domtotal.com/noticia/1524775/2021/06/a-gente-sabe-que-ela-tem-outros-interesses-la-diz-moradora-retirada-de-casa-em-barao-de-cocais-sobre-a-vale/

Dossiê-denúncia aponta violações de direitos humanos cometidos por mineradoras em diferentes cidades de Minas

Moradores de Barão de Cocais não sabem quando ou mesmo se vão voltar para a casa

Moradores de Barão de Cocais não sabem quando ou mesmo se vão voltar para a casa (MAM Nacional)

Rômulo Ávila

“Saí de casa no dia 8 de fevereiro de 2019 devido ao suposto risco de rompimento da barragem Sul Superior, pertencente à Vale. Saímos de madrugada, com a roupa do corpo, sem documentação, sem nada, deixando tudo que a gente levou uma vida inteira pra construir.” O relato é da analista administrativa Elida Couto, de 34 anos. Dois anos depois de ser forçada a sair de casa com os pais e uma tia, ela não sabe quando ou mesmo se vai voltar à comunidade de Socorro, no município de Barão de Cocais, na região Central de Minas.

A situação dos moradores de Socorro e de outras milhares de famílias vítimas da ganância e do poder econômico da mineração em Minas Gerais fazem parte de um dossiê-denúncia sobre a violação de direitos humanos cometida por mineradoras no estado, em especial na região do Caraça, em Minas Gerais. O documento de 81 páginas foi produzido coletivamente pelo Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), pelo Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular e pela Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale (AIAAV), com apoio da agência de cooperação alemã Misereor e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Membro da coordenação do MAM, Luiz Paulo Siqueira explica que o dossiê-denúncia aponta como a mineração tem utilizado de diversas maneiras e táticas para se apropriar dos territórios onde há interesse de exploração mineral. “É o caso, por exemplo, da Vale na região de Socorro, onde ela tem utilizado dessa tática de dizer que as barragens estão em risco para forçar a evacuação das comunidades”, diz Luiz.

O exemplo do coordenador do MAM vai ao encontro do relato triste e desesperador de Elida. “No mês de fevereiro deste ano, a Vale apresentou um calendário informando que um possível retorno da comunidade poderia ocorrer depois do descomissionamento. O final do descomissionamento da barragem Sul Superior está marcado para novembro de 2029. Só que é aquela coisa, a gente vê qual realmente é o interesse dela, porque o muro está pronto desde janeiro de 2020, nós estamos em junho de 2021 e até hoje não começou o descomissionamento”, diz a moradora, referindo-se ao muro construído pela mineradora para conter o avanço da lama, em caso de rompimento da barragem. “Então, a gente vê que realmente os interesses deles são outros”, lamenta.

“A Vale está fazendo negociações com algumas pessoas. Só que a gente vê o interesse dela maior em comprar, em vez de retornar com a comunidade para lá. A gente vê um interesse muito grande para adquirir as áreas. Não acho que adquirindo ela vai reparar alguma pessoa, mas sim, estará adquirindo propriedades, porque a gente sabe que ela tem outros interesses lá”, diz.

Reprodução dossiêReprodução dossiê

Câmeras da Vale

Além de não poder voltar para casa, Elida conta que os imóveis da comunidade são alvo de bandidos que destruíram parte das residências para roubar janelas, portas  e outros objetivos de valor. “Em 2019 mesmo, em abril, quando começou o primeiro arrastão lá, arrombaram (as casas) da minha rua inteira e levaram muita coisa. De lá pra cá, os roubos só crescem”, garante.

A moradora conta ainda que a Vale colocou câmeras de segurança da região, mas denuncia que o equipamento é usado apenas para monitorar os próprios moradores.

“Se eu for lá, a câmera me pega e eles chamam polícia para mim. Mas se o bandido for lá, pode roubar que a câmera não pega, não. Falo que isso é brincadeira, porque a comunidade fica revoltada. Sempre quando tem roubos, a gente pede para mostrar a câmera e passar pra polícia e, sinceramente, nunca apareceu.”

Recomendações

Além de denunciar violações, o dossiê apresenta várias recomendações para mudar o atual cenário e garantir os direitos da população. Entre elas, estão o reconhecimento do terrorismo de barragem como forma de violação de direitos humanos das comunidades atingidas, para fins de indenização e reparação integral; regulamentação imediata, pelo estado de Minas Gerais da Lei Estadual 23.291/19, que institui a Política Estadual de Segurança de Barragens; e suspensão dos acionamentos de sirene de emergência descabidos.

De acordo com Luiz Paulo Siqueira, o próximo passo é provocar audiências com as instituições de Justiça: Ministério Público Estadual (MPMG), Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público do Trabalho (MPT) e Defensoria Pública. Além disso, o documento será entregue aos poderes Executivo e Legislativo das cidades Catas Altas, Santa Bárbara e Barão de Cocais

“O dossiê sistematiza as violações de direitos, mas ele também aponta recomendações de quais são as pautas das comunidades. E é assim que nós vamos pressionar o Estado a fazer com essas pautas avancem nessas regiões”, concluiu Siqueira.

Vale não responde

A reportagem do Dom Total procurou a Vale por diversas vezes. Enviou questionamentos por e-mail uma semana antes de a reportagem ser publicada, entrou em contato posteriormente por telefone, mas as perguntas não foram respondidas.

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