Conheça Dona Rosinha, autora que lançou seu 1º livro aos 66 anos e roubou a cena na Flitabira

31/10/2025

Fonte:https://www.otempo.com.br/entretenimento/2025/10/31/conheca-dona-rosinha-autora-que-lancou-seu-1-livro-aos-66-anos-e-roubou-a-cena-na-flitabira.html

Escritora apresentou no festival a obra “Memórias do meu Quilombo”, com prefácio assinado por Conceição Evaristo

Dona Rosinha na Flitabira

Em meio a best-sellers e autores consagrados, uma estreante de 66 anos roubou a cena no Festival Literário Internacional de Itabira (Flitabira): Rosemary Alvares de Souza, a Dona Rosinha. Ex-presidente do Quilombo Morro Santo Antônio, em Itabira, e figura atuante nas lutas comunitárias e de direitos humanos, ela lança no evento o seu primeiro livro, “Memórias do meu Quilombo” (Pallas Editora), que sai com prefácio de Conceição Evaristo e orelha assinada por Fabiano Piúba, professor, escritor, historiador e gestor cultural.

 

Durante o festival – apresentado pela Vale por meio da Lei Rouanet e com apoio da Prefeitura de Itabira –, a novata viveu o tipo de reconhecimento que costuma ser reservado a autores de renome. Na noite de quinta-feira (30/10), por exemplo, atraiu uma longa fila de leitores atrás de autógrafos seus. Entre o primeiro e o último, foram quase duas horas distribuindo dedicatórias. Os pedidos de fotos foram igualmente numerosos – a ponto de, após uma de suas participações em uma mesa, o filho, Vinicios, precisasse pedir ao público para continuar a caravana de cliques do lado de fora dos salões para que as outras atividades pudessem transcorrer conforme o cronograma.

A estreante foi tietada inclusive por escritores renomados que também participam da Flitabira – vide a forma como ela foi recepcionada no almoço desta sexta (31/10), quando foi aplaudida ao chegar no restaurante montado pela organização para receber autores, curadores e profissionais envolvidos com o festival.

“Estou encabulada e surpresa, porque eu não imaginava que teria essa grandiosidade”, admite, em conversa com a reportagem de O TEMPO após um de seus compromissos no evento.

Tamanha recepção, pode-se imaginar, envaideceria a autora. Mas não. Embora, sim, orgulhosa, Dona Rosinha parece imune às tentações da vaidade exacerbada. Talvez porque esteja habituada a pensar por outra lógica, encarando suas conquistas não como um feito, mas como parte de um processo – e um processo que, como ela faz questão de lembrar, vem de uma construção coletiva, aquilombada.

Ainda em processo de se reconhecer escritora, ela admite que tudo parece acontecer num estalo. “Conheci a Conceição [Evaristo] em 2023. Ela veio para o Flitabira e foi lá no quilombo. Lá, ela leu um texto meu, uma orientação que eu tinha escrito pro meu filho, caso eu não tivesse mais aqui quando ele crescesse. Ela gostou e disse que eu devia publicar em um livro e que ia me ajudar. Depois de um tempo, veio o contato da editora, e aí eu fui percebendo que estava acontecendo de verdade”, recorda ela, que logo coloca sua história em perspectiva, indicando que antes daquele encontro havia uma longa trajetória percorrida. “Parece que as coisas estão acontecendo rápido demais, mas, se for olhar, não é rápido. Foram décadas de preparação para algo que eu nem sabia que ia acontecer”, situa.

Nascida em Belo Horizonte, Rosinha perdeu a mãe muito cedo e foi criada por uma tia, a Tita, que a levou para Morro de Santo Antônio, em Itabira. No começo, ela não gostava daquele lugar – e encontrou na escrita um espaço de refúgio. “Tudo era motivo para eu escrever. Quando eu estava triste, escrevia. Quando estava feliz, também”, conta.

Com o tempo, ela foi se sentindo pertencente àquele lugar. Teve um filho, o Vinicios e, por ele, sentiu ainda mais desejo de tomar notas de tudo, registrando a sua história e as histórias das pessoas com as quais convivia, ou, ainda, os causos que ouvia.

Dona Rosinha durante mesa na Flitabira – Crédito: @bleia/Divulgação

Essas anotações, em folhas soltas e diários, escritas ao longo de quatro décadas, são a matéria-prima de “Memórias do meu Quilombo”. Todo material foi organizado por ela, com ajuda do filho, que transcreveu cada fragmento, preservando o estilo da autora – cujo traço é marcado pela oralidade e cadência das falas. O volume reúne, então, 16 narrativas que costuram lembranças da infância em BH, o cotidiano no Morro Santo Antônio, os costumes, as rezas e as histórias contadas ao redor das lamparinas.

“Quando mostrei para a Conceição, eu não tinha a pretensão de que ia acontecer o que aconteceu. Fui reescrevendo, tirando dos cadernos amassados, com coisas de 40 anos. Fiquei meio perdida, mas fui lembrando e escrevendo do jeito que vinha. A Conceição disse que era uma colcha de retalhos – e é mesmo”, avalia.

 

‘Ela cometeu a audácia de escrever’

Em uma mesa na Flitabira, a autora de “Olhos d’água” e “Ponciá Vicêncio” falou sobre o impacto ao se deparar com um dos manuscritos de Dona Rosinha: “Eu tenho uma pulsão pela escrita e me emociono muito ao ver pessoas que escrevem em qualquer lugar, apesar de tudo. Quando Dona Rosinha mostrou os cadernos dela, fiquei ensandecida. Eram histórias que traziam esse eu coletivo. A história da Dona Rosinha é a história do povo, é a nossa história”.

Para a escritora, que cunhou o conceito “escrevivência” – que propõe um escrever que parte das experiências da vida cotidiana e das lembranças para demarcar a existência de personagens e lugares marcados pela vivência “que foi minha e dos meus” –, prefaciar o livro de Dona Rosinha “significa prefaciar a nossa vida”. “Que bom que ela cometeu a audácia de escrever. Para nós que viemos das classes populares, escrever é um ato de ousadia. Como somos audaciosas diante da vida, tomamos também este ofício da escrita ‘a ferro e fogo’”, defende. Ela lê na estreia de Dona Rosinha o mesmo impulso que moveu Carolina Maria de Jesus, Maria de Jesus da Silva, a Zuza, e Celeste Estrela.

Fabiano Piúba segue na mesma toada. No texto de orelha, ele afirma que o livro é “uma ancestralidade literária”, um gesto de liberdade e cidadania. Na mesa do festival, da qual também participou, ele recordou a visita de 2023 que selou o encontro entre Conceição e Dona Rosinha. “Foi um dia ensolarado em Itabira. Conceição pediu para que as pessoas do quilombo contassem suas histórias. Lá pelas tantas, Dona Rosinha levou a mão ao bolso, sacou um caderninho e começou a ler. Sua leitura solitária se fez leitura solidária: Ubuntu: sou porque nós somos”, disse o gestor.

Piúba descreve o livro como “uma novela de formação com 16 histórias imbricadas no mesmo novelo e tecido social, mas que também podem ser lidas como contos autônomos”. Ele defende a obra como uma escrita em que “todas as pessoas habitam a escrevivência de Dona Rosinha e passam a conviver conosco na leitura, como se nosso coração também voltasse para um lugar: o quilombo”.

Dona Rosinha parece concordar com as avaliações. Tanto que reluta em tomar para si todo sucesso. Na visão dela, afinal, este trabalho e seus frutos são da ordem de um fazer que, por mais individual que seja, ainda é, intrinsecamente, um ato que envolve toda a sua comunidade.

“Eu escrevi sobre minha tia, sobre as pessoas que me criaram. Falo da Tita, da Caetana, da Josefina, da Raimunda. São coisas simples do cotidiano, mas que mostram aquela amizade, aquela união. Que bom que escrevi, porque daqui a alguns anos, quando eu já tiver ido, a história vai ficar”, relata, ciente da importância do seu trabalho para a salvaguarda das tantas histórias que ouviu nas noites em que o quilombo se reunia para contar causos – “aquilo era o nosso rádio, era a nossa televisão”, rememora.

Na mesa, ao ser convidada a escolher uma lembrança feliz, ela falou com saudade dos velórios da roça – escolha que até gerou algum estranhamento nos presentes, alheios ao poder daqueles rituais de despedida, inclusive para o fortalecimento de um senso de unidade e apoio mútuo. “Quando morria uma pessoa, todo mundo ia para a casa dela. Tinha comida, tutu, macarronada, aquela coisa toda. Era uma união. A dor era muita, mas ficava mais leve”, detalhou.

Vale dizer, a julgar pelas reações de pessoas do quilombo que participaram do lançamento, a sensação é mesmo de uma conquista coletiva. O orgulho era patente. “Agora vamos prestigiar nossa amiga famosa”, comentava um grupo de mulheres que se dirigia à fila do autógrafo. “É a primeira vez que enfrento uma fila e fico feliz”, gracejou outra. Questionada sobre como tem recebido o carinho dessas pessoas, Dona Rosinha se anima. “Eu vejo que eles estão muito felizes de ver o nome deles, das mães e das famílias sendo lembrados”, afiança, garantindo que já tem material para ao menos outros dois livros, em que vai seguir contando histórias de seu povo.

*O repórter viajou a convite do Instituto Cultural Vale

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