Independentemente do destino que a Funai vier a ter durante o governo de Jair Bolsonaro, um fato é certo: há pelo menos três anos as decisões políticas para os povos indígenas do País já estão diretamente ligadas aos interesses da aliança entre setores do agronegócio, da mineração e da indústria de infraestrutura. Tanto é assim que ela indicou os últimos quatro presidentes da Funai.

Essa aliança vem atuando diretamente no órgão indigenista de forma coordenada e sistemática – além de truculenta – visando à mudança da legislação relativa aos direitos territoriais dos indígenas e o desmonte da rede de atores sociais a eles solidários.

O “trabalho” tem sido feito por meio de insinuações e acusações fraudulentas, argumentos jurídicos tendenciosos, procedimentos que aparentam normalidade institucional, troca de favores e corrupção. A CPI da Funai/Incra (2015-2017) foi um exemplo disso.

Com a escassez de recursos orçamentários e de pessoal na Funai, uma “nova” forma de pensar os territórios indígenas passou a ganhar espaço em meio ao indigenismo oficial e até no próprio movimento indígena. Ressurgiram narrativas que questionam o porquê de os indígenas não poderem ser empresários de si mesmos; nem arrendarem porções de suas terras ou estabelecer acordos comerciais; nem endividarem-se com o setor financeiro para alavancar seus projetos.

Tais narrativas encontram eco em um tipo de indigenismo que chamarei de agroextrativista neoliberal. Um indigenismo que questiona e resiste a qualquer nova ação de demarcação oficial de terras indígenas, ao mesmo tempo em que estimula e apoia (nas comunidades com terras já demarcadas) maneiras de pensar, agir e organizar a vida que abrem as portas aos negócios da terra.

Se não bastasse, o direito dos indígenas à terra está nas mãos do Ministério da Agricultura, controlado por ruralistas.

Em 2017, emergiu no caldeirão da política nacional uma curiosa agremiação: o Grupo Agricultores Indígenas de Base, que veio a público tutelada por parlamentares ruralistas e notórios anti-indígenas e reverberou um discurso confuso e ressentido semelhante ao da extrema direita brasileira.

Eles pedem mudanças no órgão indigenista e nas políticas públicas e também medidas que limitem a atuação de organizações não-governamentais que chamam de “comunistas” e “bolivarianas”.

É cada dia mais urgente problematizar o tema agricultura indígena. Ao mesmo tempo em que temos sistemas tradicionais agrícolas se desenvolvendo em associação à conservação da floresta e à geração de agrobiodiversidade, há comunidades indígenas no Sul, Centro-Oeste e na Amazônia que, por incentivo e sem alternativa melhor, incorporaram a proposta de produzir commodities agrícolas em suas terras, e hoje delas dependem.

Isso tem gerado efeitos nocivos à saúde humana e ambiental, assim como tensões e conflitos no interior das comunidades. No RS e em SC, “parcelas” de territórios indígenas foram arrendadas a agropecuaristas, que procuraram agências do Banco do Brasil para obter crédito do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar em nome dos indígenas.

Se as atuais políticas e a predominância dessa tutela conservadora forem adiante, a condição de subordinação dos povos indígenas e a descaracterização radical de territórios transformados em produtores de commodities, com certeza, se agravarão.

ISSO PARA NÃO FALAR DO ACIRRAMENTO DOS CONFLITOS, COM VIDAS PERDIDAS, O ÊXODO DE INDÍGENAS DE SUAS COMUNIDADES, E FAMÍLIAS E POVOS DESCONSTITUÍDOS. PARA ENFRENTAR TUDO ISSO, É PRECISO HAVER POLITIZAÇÃO, ARTICULAÇÃO E MOBILIZAÇÃO PÚBLICA QUE SEJA DEMOCRÁTICA, PLURAL E IGUALITÁRIA.

* Antropólogo social e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ e sócio efetivo da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). É autor dos livros “Povos Indígenas, meio ambiente e políticas públicas” (2017) e “Desenvolvimento, utopias e indigenismo latino-americano” (2018).

  • imagens por Helio Carlos Mello©
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