50 anos do AI-5: negar ditadura é ignorância histórica, diz pesquisador

10/12/2018

Júlia Dias Carneiro - Da BBC Brasil no Rio de Janeiro

Arquivo/Folhapress

Mesa no Palácio das Laranjeiras durante a edição do AI-5 pelo então presidente general Costa e Silva

Imagem: Arquivo/Folhapress

Ato Institucional marcou o auge da repressão política no regime militar. De acordo com o relatório final da
Comissão Nacional de Verdade, 434 pessoas morreram ou desapareceram nas mãos do Estado
Decretado no dia 13 de dezembro de 1968, o Ato Institucional número 5 (AI-5) ficou marcado na história como o nível
mais extremo a que chegou o autoritarismo no Brasil e foi o ponto de partida para institucionalizar a repressão política
durante a ditadura militar, afirma o historiador Carlos Fico.
Assinado há 50 anos pelo general Artur da Costa e Silva, o AI-5 autorizou uma série de medidas de exceção,
autorizando o presidente a fechar o Congresso Nacional, cassar mandatos parlamentares, intervir em Estados e
municípios, suspender os direitos políticos de qualquer cidadão por até dez anos e suspender a garantia do habeas
corpus.

Professor titular de História Brasileira na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Fico afirma que o ato
inaugurou o período mais violento do regime militar, entre 1969 e 1973, e caracterizou-o explicitamente como uma
ditadura.

Em entrevista à BBC News Brasil, o historiador afirma que discursos que buscam negar a ditadura são expressão de
uma “ignorância histórica”. Para ele, o governo do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL), que defende a ditadura,
poderá ser marcado por tentativas de reescrever a História sobre o período, iniciativas que poderão “dar trabalho”, mas
não irão prevalecer.

“É impossível ocultar eventos traumáticos, como o Apartheid na África do Sul, ou o nazismo na Alemanha, ou as
ditaduras militares latino-americanas”, afirma Fico, especialista em estudos sobre a ditadura militar e autor de livros
como O Golpe de 1964: Momentos Decisivos (Editora FGV, 2014) e Como Eles Agiam – Os Subterrâneos da Ditadura
Militar: Espionagem e Polícia Política (Record, 2001).

“Ao fim e ao cabo, essas realidades acabam se impondo. Os governos são passageiros, mas a História se solidifica ao
longo de décadas, séculos.”

De acordo com o relatório final da Comissão Nacional de Verdade, 434 pessoas morreram ou desapareceram nas
mãos do Estado. Publicado em dezembro de 2014, o relatório da comissão responsabilizou 377 agentes do Estado por
graves violações de direitos humanos ocorridas entre 1964 e 1988.

O AI-5 vigorou durante dez anos, até dezembro de 1978. O Congresso foi fechado no mesmo dia do decreto, para só
reabrir dez meses depois.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil – Quais foram os principais efeitos imediatos do AI-5?
Carlos Fico – O Congresso Nacional foi fechado. Na mesma noite do decreto, o ex-presidente Juscelino Kubitschek foi
preso. No dia seguinte, foi o ex-governador Carlos Lacerda, e começaram as cassações de deputados federais e
senadores. Até 1969, um total de 333 políticos tiveram seus direitos políticos suspensos.
Foi o pior momento da história brasileira em termos de autoritarismo, sobretudo pela brutalidade da tortura, dos
desaparecimentos, e também pela suspensão do habeas corpus e o fechamento do Congresso Nacional.
Foi um paroxismo, um momento de auge, do regime militar, que a partir de então ficou claramente caracterizado como
uma ditadura, com muitos prejuízos até hoje.

BBC News Brasil – Como a sociedade reagiu? Ou não reagiu, porque não podia?
Fico – A sociedade realmente não reagiu. Foi um ato brutal de força. O fechamento do Congresso, a prisão dessas
grandes lideranças populares, a cassação de centenas de pessoas, tudo isso tornou a possibilidade de uma reação
praticamente impossível.

O que acontece depois do AI-5 é que o regime cria estruturas nacionais clandestinas de repressão política. O sistema
DOI-Codi, que fazia as prisões e interrogatórios, em geral seguidos de tortura; o Sistema Nacional de Informações, que
na verdade fazia espionagem e censura política. A repressão política é institucionalizada a partir do decreto.
Começa a haver muitos interrogatórios, com brutalidades, tortura, e muitas prisões sem comunicação à Justiça. Uma
das iniciativas lamentáveis do AI-5 foi a suspensão do direito de habeas corpus para quem fosse acusado de crimes
políticos. Não havia a possibilidade de recorrer à Justiça. Todos os atos praticados com base no AI-5 estavam fora da
jurisdição da Justiça comum.

As pessoas acusadas de crimes políticos passaram a ser julgadas pela Justiça Militar, o que era uma aberração.
Apesar disso, quando as pessoas eram levadas para a Justiça Militar, elas se sentiam aliviadas, porque pelo menos
estavam fora do aparato clandestino de repressão política. Pelo menos estavam protegidas da tortura, que era
praticada sobretudo no sistema DOI-Codi.

BBC News Brasil – Qual foi o contexto por trás do AI-5? Por que o regime militar chegou àquele extremo?
Fico – Em 1968, houve protestos frequentes dos estudantes, que eram reprimidos com violência pela polícia. Em março,
um dos estudantes (Edson Luís) acabou morto em uma dessas manifestações no Rio, no restaurante Calabouço.
O episódio motivou muitas passeatas contra o regime, que levaram a ala mais radical a pressionar o presidente Costa e
Silva a decretar um novo ato institucional que permitisse punições excepcionais, como cassações de mandatos e
suspensão de direitos políticos.

Ele próprio não queria um novo ato que reabrisse a temporada de punições, e inicialmente conseguiu evitar a medida,
em uma reunião do Conselho de Segurança Nacional em junho. Digo reabrir porque os primeiros atos institucionais
após o golpe haviam liberado punições excepcionais, mas com prazos determinado. Quando Costa e Silva assumiu,
ele não tinha mais esses mecanismos punitivos em mãos.

Depois dessa reunião, entretanto, militares e civis da direita mais radical começaram a agir para criar um clima de
conflagração que obrigasse Costa e Silva a decretar o ato. As provocações incluíram invasões de universidades e
sequestros de artistas. Até que em agosto houve a violenta invasão da Universidade de Brasília (UnB), na qual um
estudante levou um tiro na cabeça.

Vários filhos de parlamentares estudavam na UnB, e a invasão foi vista como um excesso mesmo por políticos da
Arena, o partido que apoiava o regime militar. Marcio Moreira Alves, um deputado da oposição, fez um discurso
criticando duramente as forças militares. O discurso foi o pretexto para decretar o AI-5. Os militares queriam processar
Moreira Alves, mas a Câmara se recusou a liberar o deputado de suas imunidades. Mas veja que havia desde 1964
essa demanda por reabrir a temporada de punições.

BBC News Brasil – Foi também uma reação à luta armada?
Fico – A luta armada cresceu, sobretudo, a partir do AI-5. Aqueles estudantes que protestavam em 1968 ficaram muito
frustrados com o decreto, e se tornaram recrutas fáceis para as organizações de esquerda que se denominavam
revolucionárias. Muitos nem eram comunistas, mas passaram para as ações armadas em função desse fechamento (do
regime).
Mas não há uma relação de causa e efeito. A linha dura queria a reabertura das punições desde 1964. E a esquerda
vinha debatendo a opção pela luta armada antes mesmo do golpe de 1964, desde a época da Revolução Cubana (em
1959).
Uma coisa não é causa da outra, mas com certeza houve um processo de retroalimentação. Com o passar do tempo,
os militares diziam que era preciso manter a repressão política por causa das ações armadas; e a esquerda
revolucionária justificava a necessidade de pegar em armas por causa do AI-5, que institucionalizou a repressão. A
partir do decreto, o número de vítimas (mortos, desaparecidos e torturados) da ditadura aumentou muito, sobretudo
entre 1969 e 1973.
BBC News Brasil – Por que ganham força questionamentos sobre ter havido uma ditadura?
Fico – A negação de ter havido uma ditadura é simplesmente uma loucura, uma idiotice. Não sei bem como
caracterizar.
O que acho mais significativo, em termos da sociedade brasileira, é que muita gente diz que, naquele tempo, as coisas
eram melhores. Não negam que houve uma ditadura, ao contrário, dizem que era até melhor.

Isso acontece porque a memória que se construiu no Brasil sobre a ditadura militar não é uma memória traumática
como foi, por exemplo, na Argentina. Lá, a repressão foi muito visível. Pessoas eram mortas nas ruas, havia tiroteios. Os
próprios militares anunciavam que iam matar até o último comunista.

BBC News Brasil – Foi também pela escala da repressão? Na Argentina fala-se em 30 mil mortos e desaparecidos, um
número muito maior que no Brasil.
Fico – Sim, também isso. Mas mesmo as pessoas que não foram afetadas viam, ouviam, liam, viam as fotografias – isso
quando não esbarravam com um cadáver nos terrenos baldios. No Brasil não houve essa experiência, essa vivência da
repressão política.

BBC News Brasil – Por quê? A população não ficava sabendo?
Fico – Por duas razões. Primeiro pela censura política, que foi institucionalizada após o AI-5. Foi criado um órgão
secreto no gabinete do diretor geral da Polícia Federal que reunia as solicitações de diversas autoridades listando
temas que deveriam ser proibidos na imprensa, as chamadas proibições determinadas. Era vetado escrever sobre
confrontos entre a repressão e a chamada luta armada, que praticava as ditas ações revolucionárias.
Além da censura, havia uma propaganda política muito eficaz. O período de 1969 a 1973, que foi o auge da repressão,
coincidiu com o período do chamado milagre brasileiro. O PIB cresceu em índices elevadíssimos, de 9, 10, 11% ao ano.
A própria imprensa estrangeira falava em milagre brasileiro.

O governo do presidente (Emílio Garrastazu) Médici (que sucedeu Costa e Silva em 1969) fez uma enorme campanha
de propaganda política na televisão que dava a impressão de que o Brasil tinha finalmente encontrado o seu destino de
potência. Obras faraônicas eram feitas e a propaganda do governo vendia a imagem de um país que estava dando
certo, um país que ia para a frente, “pra frente, Brasil”.

Se você associa a censura vigorosa com essa propaganda política e os benefícios decorrentes do crescimento
econômico, com todo mundo comprando eletrodomésticos, carros, até casa própria, essa combinação explica por que
no Brasil não se construiu uma memória traumática como na Argentina. Então, aqui, muita gente hoje lembra
positivamente daquela época.
BBC News Brasil – O presidente eleito defende a ditadura, o uso da tortura e exalta o general Brilhante Ustra (que
chefiou o DOI-Codi). O que representa para o Brasil ter um presidente com essa postura?
Fico – Isso é expressão de uma ignorância histórica. Jair Bolsonaro e outros militares na ativa e na reserva expressam
essa ignorância e essa incapacidade de compreensão.
Eu creio que, ao fim e ao cabo, essas realidades acabam se impondo. Os governos são passageiros, mas a História se
solidifica ao longo de décadas, séculos.
É impossível ocultar eventos traumáticos, como o Apartheid na África do Sul, ou o nazismo na Alemanha, ou as
ditaduras militares latino-americanas. Isso é apenas expressão de ignorância. Não prevalece, evidentemente, entre as
pessoas que conhecem minimamente a História, e certamente não vai prevalecer com o passar do tempo.

BBC News Brasil – Mas no curto prazo o senhor acha que podemos ver iniciativas que tentem reescrever a História?
Fico – Não há a menor possibilidade de isso acontecer. Mas sim, acredito que vá haver muitas tentativas. Até pelo perfil
do novo ministro da Educação (Ricardo Vélez Rodríguez) e de outros nomes indicados (para o futuro governo).
É claro que vai haver tentativas de dizer que 1964 não foi um golpe, que não houve ditadura, em torno de projetos como
o Escola Sem Partido. Mas isso não vai prevalecer, é um disparate. Essas iniciativas vão ocorrer, e vão dar muito
trabalho. Mas a realidade prevalece.

Fico – O AI-5 foi uma espécie de paroxismo de uma tradição que no entanto vem de longa data, infelizmente, no Brasil.
Eu a chamo de utopia autoritária. É a ideia de que o povo é despreparado. De que o Congresso Nacional é um
obstáculo. E que, portanto, eventualmente seria conveniente, admissível, fazer algumas coisas fora dos parâmetros
constitucionais.

Uma das frases famosas sobre o AI-5 é do Delfim Netto (então Ministro da Fazenda), que o defendeu por ter
conseguido fazer uma reforma tributária que durou 25 anos. É justamente essa a perspectiva: de que eventualmente é
preciso medidas autoritárias para impor decisões certas, segundo determinada elite que esteja no poder.
Isso perpassa todo o período republicano brasileiro, mas foi levado ao extremo durante as nossas duas ditaduras, o
Estado Novo e a ditadura militar. E o AI-5 é o paroxismo dessa visão.
É muito ruim que essa perspectiva autoritária não tenha sido completamente dissolvida. Ela não desapareceu
totalmente. E volta e meia percebemos no Brasil indícios dessa visão que busca atalhos constitucionais. Acho que isso
é o que há de permanente. A ditadura não foi algo que caiu como um raio em céu azul.
BBC News Brasil – A maneira como se deu a anistia, sem punição por violações de direitos humanos, prolonga a
possibilidade dessa utopia autoritária ressurgir?
Fico – Não, acho que aí há outro problema. Acho que a Lei de Anistia decorreu de duas coisas. Um, o fato de não ter
havido propriamente uma grande visibilidade da repressão, e portanto não haver essa memória tão traumática; e a
enorme tradição de conciliação que existe na história política brasileira. Os setores da elite, quando se veem em
conflito, tendem a encontrar formas de conciliação.

Mas claro que o fato de militares e civis que praticaram violações de direitos humanos não terem sido julgados tornou a
transição brasileira muito peculiar, quase que inconclusa. Tanto que o primeiro governo civil na transição para a
democracia foi um antigo líder durante o regime militar, o José Sarney. Foi uma transição muito suave, amaciada. Nunca
houve no Brasil uma ruptura clara com a ditadura.

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